Entrevista

Ubiratan D`Ambrosio e a Decolonialidade na Etnomatemática

Claudio Fernandes da Costa
Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil

Revista de Educação Matemática

Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil

ISSN: 2526-9062

ISSN-e: 1676-8868

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 18, núm. 2, e021037, 2021

sbem.sp.revista@gmail.com

Recepção: 26 Junho 2021

Aprovação: 18 Agosto 2021

Publicado: 03 Setembro 2021



DOI: https://doi.org/10.37001/remat25269062v18id597

Introdução

Em tempos de crise político-econômica e de retrocesso democrático, agravados pela pandemia do Corona vírus, vivemos um ano de 2020 com continuidade em 2021, onde a face cruel e dramática da histórica exclusão social brasileira atingiu um patamar inimaginável em número de mortes, desempregados, subempregados e desvalidos, ou seja, de degradação do valor da vida, em especial da vida dos trabalhadores, dos mais pobres e dos idosos.

É nesse contexto dramático que trazemos uma entrevista[1] realizada com Ubiratan D`Ambrosio, o principal teórico da Etnomatemática, infelizmente falecido em 12 de maio de 2021, antes, portanto, de publicizarmos essa sua recentíssima contribuição. Nela poderemos constatar a potência e atualidade de sua formulação, já que se vincula à uma crítica contundente das formas dominantes e excludentes de conhecimento e de existência, defendendo em contrapartida uma concepção ontológica, histórica e dialética, onde a vida e as culturas, o ser humano e suas relações sociais e com a natureza, ocupam lugar central.

Essa entrevista buscou, em sua organização[2] e dinâmica, instigar D`Ambrosio a analisar possíveis relações entre teorias da decolonialidade e a Etnomatemática”, expressão cunhada por ele como síntese da sua definição sobre esta importante área da Educação Matemática. Diante da pandemia, optamos pela dinâmica de uma entrevista online que, apesar dos previsíveis problemas inerentes a este formato, acabou enriquecendo a reflexão nela desenvolvida.

Neste sentido, D`Ambrosio explicitou a sua compreensão sobre processos e ideias coloniais/decoloniais, estabelecendo uma análise a partir de fundamentos do seu Programa Etnomatemática. Ao mesmo tempo, o pensador buscou contextualizar essa análise, abordando, na medida do possível, temas como globalização, tecnologia, “ensino” remoto, Base Nacional Comum Curricular, relações político-econômicas de poder e de saber.

Portanto, acreditamos que a organização e, sobretudo, a dinâmica dessa entrevista, realizada e transcrita intencionalmente em linguagem coloquial, com a autorização do autor, produziu um conjunto de reflexões acerca do necessário diálogo entre ideias decoloniais e a Etnomatemática. Cumpriu, assim, o papel de provocar, instigar, mas também de vislumbrar alternativas necessárias nesse momento histórico que nos obriga a refletir profundamente sobre temas como conhecimento, exclusão e a própria existência humana. D`AMBROSIO PRESENTE!

GETUF - Como a perspectiva etnomatemática se aproxima, se relaciona dessa perspectiva decolonial ou da decolonialidade, no sentido de observar e de estabelecer uma análise de que, para além de projetos de colonização, essas experiências deixaram aí um legado que é exatamente a ideia da colonialidade?

Não apenas houve uma colonização, mas uma colonialidade do poder e do saber. Portanto a ideia de decolonializar, a decolonialidade, é uma espécie de libertação dessas ideias coloniais que permaneceram para muito mais além do processo histórico, lá dos séculos anteriores. Trazendo uma das seis dimensões que o próprio Ubiratan trata na sua obra, caracterizando a Etnomatemática, a dimensão da política, como veria essa relação, já que a dimensão da política tem uma proximidade fundamental com a dimensão epistemológica?

Ubiratan - Olha, já que a palavra decolonização apareceu, colonialidade apareceu, a colônia apareceu. É interessante como os nomes trazem muitas visões diferentes. Então, quando a gente fala em colônia, uma coisa muita antiga, que vem desde a antiguidade da Mesopotâmia, quando os persas “pegaram” a Babilônia, e as guerras com o Egito, aí entrou a Grécia, Alexandre. Em cada um desses momentos houve conquista, na qual a ideia de colônia é completamente diferente. Que é que eles tinham? Todos tinham necessidade de alimentar seu povo e sempre a dificuldade de produzir, ter alimentos, e eles iam buscar alimentos onde se produzia mais. Um jeito de “pegar” alimento, ou era por acordo comercial, como aconteceu muito entre Roma e Egito. Chegou um momento, onde Roma conquista o Egito; não chama colônia, eles chamavam província. E Otaviano, o Imperador Augusto, domina o Egito. E ali, o que interessava a eles? É receber os produtos que eram essenciais para Roma sustentar toda sua população. Cereais, basicamente. Essa é a ideia dessa conquista, dessa colônia ou desta província, como eles chamavam.

Muito interessante que, para ter uma boa produção, é muito importante que o povo conquistado produza bem, trabalhe bem, trabalhe feliz, de acordo com a suas tradições, com seus deuses, com o seu conhecimento e com a sua cultura. Se eles não estiverem no ambiente deles, no ambiente intelectual, no ambiente de trabalho e no ambiente natural, eles não vão produzir bem. E para o conquistador, para Roma, para a metrópole, o que interessa é uma boa produção. Com isso, Augusto visitou várias vezes o Egito, e ao visitar não há nenhuma tentativa de mudar a cabeça deles com relação à religião, não tem nada contra os ídolos; os deuses romanos são para os romanos, os egípcios tinham os deles. Os egípcios tinham o conhecimento deles, a aritmética, a geometria. Os romanos também tinham o deles. Nenhuma tentativa de impor ao colonizado, ao conquistado, a mentalidade romana. A única coisa que interessava é que houvesse uma boa produção. E para isso o povo conquistado deveria de algum modo, estar satisfeito com o conquistador. E o conquistador se aproxima dos egípcios. Um exemplo é que quando Augusto vai ao Egito, ele é chamado de faraó. O imperador de Roma é um faraó no Egito. Tinha todo o respeito pelos deuses egípcios, pois nada tinham a ver com eles, pois os deuses romanos eram outros. O importante é que eles produzissem o suficiente para o que interessava a Roma.

Bom, essa ideia de colônia, que eles chamavam província, mas era colônia, está muito clara também na Bíblia, no Novo Testamento. É notável a frase, atribuída a Jesus: “Dar a Cesar o que é de César”. O que é de Cesar? E o que ele vem buscar? O que o César tinha lá? Soldados, coletores de impostos e Pôncio Pilatos, que era o gerente de todo o processo, que não se metia com as ideias dos judeus, não se metia com a intelectualidade judaica. Tanto que lavou as mãos no julgamento de Jesus Cristo. Isto significa: “Isso é problema de vocês!”. Esse é um estilo de colonização que perdurou, e existia muito antes, por exemplo, quando se estuda a antiga Mesopotâmia, quando os Assírios invadem a Babilônia, etc., a mesma ideia está ali. O conquistado tem o seu conhecimento, tem as suas ideias, tem seu dia a dia de um certo modo. Nenhum problema, desde que satisfaça o interesse do conquistador. É um negócio puramente de produção, de explorar a produção do outro para benefício da metrópole.

Quando começa a cristianização do império romano, começa a surgir uma ideia de conversão para um pensamento do dominante, o que a gente chama “a catequização”. E essa catequização, vai na religião e, obviamente, vai nas ciências, vai no conhecimento, etc. Inclusive a língua. O latim passa a ser a única língua oficial, sobretudo nas práticas da nova religião.

Essa é a visão da história até 1500, quando começam as grandes viagens, a ideia é a mesma. Desde que os colonizadores encontrassem uma boa produção, muito bem, o conquistado continuava a exercer poder local, sempre supervisionado pelo gerente, com nomes variados, do conquistador. A partir de então, a língua oficial passou a ser a do conquistador. Era um conceito de colônia muito diferente daquele da Antiguidade. Efetivamente, a colônia era a efetivação e manutenção da conquista. É o que aconteceu nas regiões andinas. Os espanhóis eram incapazes de tirar ouro e prata, então eles mantiveram a estrutura governamental lá nos Andes. Em outros lugares, o conquistador trazia imigrantes forçados, escravos, (principalmente da África) ou imigrantes voluntários, principalmente europeus, como é o caso dos Estados Unidos, do Brasil e de praticamente toda a América Latina e Caribe. O objetivo era produzir o que interessava às metrópoles. Entretanto, nas conquistas das grandes navegações, junto às forças armadas do conquistador estava o clero, catequistas com muito poder sobre os comandantes e sobre os militares, muitos mercenários. Diferentemente do colonizador interessado na produção, a catequese tem como grande objetivo transformar a mente, colonizar a mente. Aqueles que estavam acostumados a ver e adorar deuses da sua tradição, tiveram que rejeitá-los e substituírem por um Deus inteiramente estranho a eles. O mesmo se passa com a língua e com conhecimentos científicos, práticas do cotidiano e valores. Língua, conhecimentos científicos, práticas do cotidiano e valores nativos foram reprimidos, criminalizados, e foram substituídos pela língua, conhecimentos científicos, práticas do cotidiano e valores do conquistador impostos pelos catequistas, que tinham a responsabilidade da educação. O que era imposto, língua, conhecimentos científicos, práticas do cotidiano e valores; era completamente diferente. A história nos mostra que o conhecimento científico está diretamente ligado ao conhecimento religioso. Daí a grande importância da religião. Claro, em consequência, conhecimentos, costumes, valores e as leis, principalmente a língua, são impostas. Diferentemente do que havia na colônia da Antiguidade, que visava bens materiais, a colônia pós-1500 visa também a mente, a transformação mental do colonizado. Atinge não só que ele seja obrigado a fazer determinados trabalhos, a produzir, mas também que ele tem que pensar de outro modo. Assim começa esse mundo globalizado. Hoje, todo mundo pensa de modo semelhante. Nunca houve antes uma coisa desse tipo. Por isso nós estamos agora enfrentando o problema, porque todo o sistema de produção se globalizou, em um mundo em que há pouquíssimas colônias. A descolonização política já se deu. Mas as mentes continuam colonizadas, integradas e reproduzindo o pensamento imanente das metrópoles europeias. Não há um processo de dar atenção aos conhecimentos nativos e às tradições. Em muitos casos há mesmo criminalização e repressão a esse pensamento. Se livrar da mentalidade colonizada como acabo de descrever, é o que hoje se chama, nos círculos acadêmicos, decolonização. Um “s” faz a diferença. A descolonização política representa a continuidade da conquista, pois efetivamente aceita e se submete ao modelo civilizatório europeu do conquistador, que impôs a todo o mundo. A aquisição de bandeira, de um sistema de governo, de uma constituição, de moeda própria, são sucessos simbólicos. A própria história e a geografia dos países que se tornaram independentes são atreladas e subordinadas à do conquistador, glorificando o modelo civilizatório que se impôs a todo o mundo, obviamente equivocado. Deu como resultado o estado atual da humanidade, no qual prevalecem desigualdades, injustiça e, sobretudo, discriminação e radicalismo, e que realmente ameaça a extinção da civilização. Enfatizo que a descolonização política se deu, com algumas exceções, em todo o mundo. A decolonização da mente é a necessidade que temos de restaurar a dignidade e historicidade autêntica de todas as culturas. É um processo muitíssimo complexo, de certa forma incorporando um certo romantismo, justificável. Muitos povos propõem uma forma de decolonizar a mente, assumindo a língua nativa: “Esta é a língua que a gente tem que falar!”. Mas surge o problema: como se comunicar no mundo de hoje usando a língua nativa? Como trabalhar na economia de hoje praticando a aritmética das tradições? Estamos numa fase onde essa ideia da decolonização é uma ideia muito relativa. É o que eu sempre insisto: a gente acaba sendo obrigado a ter duas posturas intelectuais. Aquela que nos coloca no mundo globalizado e aquela que nos dá orgulho das raízes. Em toda minha experiência de me dirigir a povos indígenas, africanos, Imigrantes e outros, tenho enfatizado a enorme importância de recuperar a sua historicidade, a dignidade das suas origens, manter vivas certas tradições, sobretudo a língua, isto é, ter consciência das suas raízes e orgulho delas. Lembro de ter dito a um aluno, preparando um curso sobre matemática africana: “Você vai falar de africano? Africano de África ou afro-brasileiro? São diferentes”. O afro-brasileiro que tem duas, três, quatro ou mais gerações nascidas no Brasil. São africanos de muitas gerações, assim como eu sou brasileiro de quatro gerações. Minhas raízes são italianas. Como eu cheguei aqui? Como eu estou aqui nesse país tão longe? Eu vim de outra cultura, de outra tradição. Por que razão eu vim? Porque meus ancestrais estavam em situação difícil na Itália e procuraram uma terra onde eles pudessem ter uma vida mais favorável. Isso aconteceu muito com a emigração europeia. Quase todos têm essa história. No caso dos afro-brasileiros a razão foi outra, não foram imigrantes voluntários, na sua história. Os africanos foram trazidos como escravos porque eram uma boa fonte de dinheiro para os europeus compradores e africanos vendedores. A obtenção de lucro à custa de práticas desumanas, brutais, era dominante naquele período, entre todos os povos. Todos os momentos e eventos históricos devem ser contextualizados. Cada um tem a sua razão de ser. Cada vez que eu penso nos meus tatatatatataravós, eles estavam numa região cultural interessante, a cultura italiana é importante, eu sinto orgulho de minhas raízes culturais e procuro conhecê-las. Então, o passo principal no processo de decolonização de afro-brasileiros, de indígenas e de outros é recuperar a historicidade de suas raízes culturais, ter orgulho delas e honrar a memória de seus ancestrais. Eles estavam numa região culturalmente muito rica. Como numa árvore se não houver raízes fortes, no primeiro vento ela quebra. A árvore aguenta se ela tiver boas raízes. As raízes são as que sustentam a capacidade de conhecer e participar da mentalidade dominante sem perder ou colonizar sua própria mente. O processo histórico de colonização das mentes é irreversível. É importante conhecer para não repetir erros na construção de um novo futuro.

O que eu disse acima foi só comentário sobre o movimento chamado decolonização. A motivação desta entrevista é a Etnomatemática. O que a Etnomatemática tem a ver com isso? Existem muitas formas de conceber Etnomatemática, todas, essencialmente, reconhecendo formas de fazer e saber matemática em grupos culturalmente diferenciados. O Programa Etnomatemática é uma evolução desse conceito, estendendo-o a todas as áreas de conhecimento e de comportamento humanos. Assim é uma teoria de conhecimento e comportamento humanos. O Programa Etnomatemática repousa sobre duas coisas principais: a evolução do conhecimento e do comportamento desde o Luca, o primeiro ancestral comum a todos nós, introduzido por Charles Darwin; e o surgimento da consciência. A partir daí vamos começar a ver que as espécies vão se diferenciando chegando aos hominídeos, seis, sete milhões de anos atrás, bem diferenciada de outras espécies, e essa diferenciação é, sobretudo, consciência. O que é consciência? É agir com alguma percepção se aquilo tem algo a ver com o que está acontecendo e com o que pode acontecer. Os estudos sobre o que é consciência é uma área muito interessante que eu tenho trabalhado muito.

Bom, na ideia de consciência aparece também a ideia de cognição. O que se passa na mente, na nossa cabeça, para a gente conhecer, para a gente poder agir, para a gente perceber? Em tudo isso entra essa ciência que está se desenvolvendo muito, que é a cognição. E eu procuro entender desde os hominídeos, que começam a se diferenciar muito cerca um milhão de anos atrás. Surgem o homo neandertense, o homo desinovense e outros, todos construindo comportamentos adequados para viverem em sociedade e conhecimentos adequados para sua sobrevivência. Começa a construir conhecimentos. Aí surgem estratégias para melhor observar, para comparar, para ordenar, para avaliar, e distinguir formas geométricas, para mensurar, para olhar quantitativamente, que dá origem à aritmética, e para inferir, tirar conclusões, uma proto-lógica. Toda matemática se constrói a partir disso. Isso permite imaginar o surgimento de uma proto-matemática cerca de 500 mil anos trás. Contemporâneo do homo neandertense e do homo desinovense, provavelmente mais jovem, é o homo sapiens, que era menos avançado, mas que foi capaz de absorver coisas dos outros, principalmente conhecimento. E aí eu o caminho para entender, historicamente, a evolução do conhecimento.

Claro, um dos conhecimentos primeiros que eles constroem é sobre as origens, os mitos de criação. A partir dos mitos de criação, começam a se desenvolver as outras áreas de conhecimento. Eu, como todos nós, tenho trabalhado muito tentando entender o que acontece com os novos meios digitais. Claro que eles estão mexendo na maneira da gente observar, comparar, qualificar, contar, tudo. Esses novos meios digitais estão produzindo uma transformação, talvez a nossa espécie homo sapiens sapiens passe a ser uma outra espécie. Nós somos aqueles que estão, de algum modo, ligados pela mídia, por esse digital. Alguns chamam homo dictyous. Tudo isso são especulações que faço, apelando ao imaginário.

Além da evolução do comportamento e do conhecimento e do surgimento da consciência, dou muita atenção ao que chamo a evolução de conhecimento e comportamento, nesses milhões de anos atrás. Um segundo componente do Programa Etnomatemática é o que eu chamo a “dinâmica de encontros culturais”. Podemos perceber, desde o neandertal e o desinovan e outros contemporâneos, inclusive o homo sapiens, grandes movimentos migratórios e as razões desses movimentos. Como eles se deslocam e por que razões eles se deslocam. Claro, são grupos que têm seu comportamento e o seu conhecimento, e ao se deslocarem, encontram outros grupos que têm outro sistema de comportamento e de conhecimento. Aí eles se encontram. Desse encontro há três possibilidades. Uma delas é um sistema de comportamento e de conhecimento eliminar totalmente o outro. É raro acontecer isso. Outra é um sistema de comportamento e de conhecimento, ser totalmente absorvido pelo outro, o que também é raro acontecer na totalidade. E uma terceira é um sincretismo, a produção de um novo sistema de comportamento e de conhecimento. A produção de uma mistura, de uma hibridização, de conhecimentos e comportamentos, de um tipo e de outro. Isso é o que chamo a dinâmica dos encontros culturais. É importante dar a maior atenção à dinâmica dos encontros culturais ao longo da história.

Aqui eu volto a falar de colônias. A ideia era de manter o sistema de produção, etc.; se vê evidências da dinâmica de encontros culturais naqueles momentos que o Augusto, faraó do Egito, esteve por lá. Alguma coisa deve ter se passado na cabeça e quando ele volta Roma, não como Augusto faraó do Egito, mas como Augusto imperador de Roma, ele é um pouco diferente de quando ele saiu de Roma e foi para o Egito. Isto é também o que se passa com um turista. O turista não vai com intenção de se transformar, mas ele volta diferente. O encontro com um outro diferente o torna diferente, mesmo tenuamente. Então há uma dinâmica muito grande em tudo isso, que é uma coisa que eu tento entender e que é fundamental nas pesquisas sobre Etnomatemática. Agora eu volto à Etnomatemática. A Etnomatemática está sujeita a tudo que discuti entes. Quando eu falo matemática não tem nada a ver com a “Matemática” que vem das academias gregas e foi elaborada pelos islâmicos e europeus, hoje Matemática como disciplina acadêmica. Me refiro à Matemática a partir de sua raiz etimológica, matema. Matema o que é? É aprender, entender, ensinar. Quando o pessoal que faz Etnomatemática pensa em numeração, não pode deixar de reconhecer que aí estão envolvidos a língua, a religião, a culinária, e tudo o mais de uma cultura. O Programa Etnomatemática considera tudo isso. Isso é exemplificado, como dinâmica de encontros culturais, com a língua portuguesa que, aqui no Brasil, é muito diferente da língua portuguesa de Portugal. O Programa Etnomatemática tenta entender essa transformação que se dá como uma dinâmica de encontro cultural. Resulta, obviamente, no nosso tempo de hoje, como resultado do processo de colonização. Então, essas coisas estão todas ligadas. Por isso, eu acho um perigo a gente simplificar, de certo modo, essa questão de decolonização de mentes. Primeiro lugar, ela não vai mudar, não tem como mudar, nós vamos continuar a falar uma língua que os outros todos entendem, porque não somos mais isolados. Quando se estuda a dinâmica de encontros culturais, eu começo a estudar os neandertais, como eles se deslocavam, de pessoal de um grupo que vai para outro grupo, entra em desacordo, começam guerras, começam conflitos, começa a dominação, começa uma nova estrutura de poder, e assim vamos entendendo um pouco melhor a história.

Hoje nós falamos muito em poder. Qual o mais poderoso, Estados Unidos, ou China, ou outras comparações. Nada disso! Hoje devemos entender poder globalizado, as coisas estão muito amarradas, todas presas. Então, decolonizar a mente é muito complexo e insisto relativo. Muito da mente colonizada permanece. Isso é bem abordado no romance de Mia Couto, de 2002, “Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra”, bem analisado pelo historiador Dércio Brauna: Uma Nação entre Dois Mundos, 2008. Insisto na recuperação de incorporação de raízes. A colonização das mentes tentou apagar, eliminar memórias das raízes e das tradições. O fundamental na decolonização é recuperar isso. Mas na colonização houve o surgimento de novas ramificações que se mesclam com as raízes tradicionais e são assimiladas. Impossível eliminar essas ramificações introduzidas pelo colonizador. Essa é a essência do trabalho de Mia Couto. É necessário ter uma convivência de duas mentes. A das nossas raízes e tradições e a do mundo globalizado. Conhecer suas origens. Sua mãe. Seu pai. E mais além, seus avós e seus bisavós. Qual era a cultura deles? O que eles sabiam? A mente decolonizada valoriza as origens, as raízes. A mente decolonizada convive com a mente globalizada, da qual a gente não pode escapar. Então, não há desacordo com Boaventura ou com Quijano, Marcio Campos e outros líderes da Epistemologia do Sul. O que sinto é um possível desequilíbrio no considerar a mente numa nova era. Descolonização política e decolonização da mente são conceitos distintos. É isso que eu acredito que o Programa Etnomatemática oferece, mas não temos nenhuma ilusão. A mente decolonizada é diferente da mente pré-colonizada. Um colega, Walmir T. Cardoso, tratou a astronomia dos Tukanos. Foi para a região, pesquisou e entendeu o significado que os nativos dão às constelações. Completamente diferente. Alguma coisa pode seguir adiante num mundo globalizado se a gente adotar ou se eles adotarem essa astronomia? Dizer “não quero mais saber da sua astronomia, eu tenho a minha! Não vou me colonizar conhecendo a sua astronomia, as suas constelações, eu tenho as minhas”. O que vai acontecer? Como eles se integram nesse mundo globalizado? Muito interessante quando a gente estuda o budismo. A China é muito forte em tradições budistas. Buda não tem nada a ver com a China. Buda é da Índia. Como se deu esse encontro cultural? Como nessa dinâmica você criou várias religiões na China, na Índia, no Japão, que tenha ligações com aquela que tinha na Índia? Esse processo continua, um processo permanente. Se você quiser radicalizar e anular tudo o que vem de fora, é insustentável, não dá mais para continuar. Bom, em síntese, é isso que eu penso. Gostaria de ouvir vocês, é claro. Mas agora necessito beber um pouquinho de água.

GETUFF - Acho que eu concordo. Mas esses autores seriam então radicais?

D`Ambrosio - Talvez devam dar mais importância à dinâmica de encontro cultural, e não olhar essa dinâmica como sendo a imposição. Há um encontro. Nesse encontro, tudo se transforma. Seria como tirar a batata da culinária européia, “decolonizando” a Europa.

Eu peço desculpas ao Quijano, ao Boaventura de Souza Santos, pelo exemplo. Eu sou um grande admirador do B.S.S. Não conhecia o Quijano, mas gostei muito do texto que vocês me enviaram, muito coerente, muito bom; mas faltou a relativização desse processo todo.

Aí entra um aspecto perigoso da decolonização, a classificação, o ruim e o bom, o demônio e a vítima, o mau o colonizador, e o santo o colonizado. Pode ir nessa direção, chega a isso. Tenho feito comentários sobre a inquisição, adotando uma vertente historiográfica que relativiza e contextualiza julgamentos.

Foi parte de um grande processo de evolução de pensamento e comportamento que levou às grandes viagens, que levou a essa colonização brutal. Se todos nós vivêssemos há 300 anos, muito provavelmente teríamos comportamento semelhante aos que estavam lá.

GETUFF – O professor, B.S.S traz dois conceitos: a Sociologia das emergências e a Sociologia das ausências. Eu achei que poderia ter alguma aproximação no sentido de que a Etnomatemática dá visibilidade, de alguma forma, ao que estava ausente nos estudos desses saberes invisibilizados, passando a ser mais visibilizados, mais valorizados. O senhor concorda com isso?

D`Ambrosio - A interessante ideia do BSS sobre sociologia das emergências e das ausências, vai mais na discussão de processo politico-econômico que vem permeando a globalização. Aborda a descolonização, mas acho menos pertinente à decolonização da mente. Visibilidade leva a perguntar: visível para quem? Por que o sucesso da matemática depois de Newton, se tornou tão visível? Porque ela ajudou nos processos sociais, políticos e econômicas que estavam emergindo na época. Porque as pesquisas de Newton, mais amplas que a matemática, foram invisibilizadas. É uma questão de poder no sentido amplo. Uma das histórias das mais notáveis dos primeiros anos do Brasil Colônia é a História do Brasil do Frei Vicente do Salvador. Muito claramente ele mostra a associação da ciência (nesse caso a matemática) com o contexto socioeconômico. Disse ele: como esses indígenas têm uma capacidade notável de se organizar em famílias, em gerações, coisa que nós não temos na Europa. A língua deles é muito rica, e a contagem deles é nos dedos, um, dois três, quatro, cinco, passa para a outra mão, se necessário usa os pés. Por que isso? Por que não desenvolveram numeração? E Frei Vicente do Salvador vem com uma explicação da parte econômica e da parte produtiva. Eles não desenvolveram a ideia de propriedade, daquilo que é meu, eu tenho mais que você. Então, as coisas não adquirem valor pelas coisas. “Ah, isso vale mais do que aquilo”. Não existe essa valorização do objeto em si. Aquilo é importante, se for importante para mim. Um exemplo de raciocínio indígena observado por ele é o seguinte. Eu estou precisando de uma galinha para comer, eu tenho aqui cinco pintinhos, mas isso eu não consigo comer tão bem quanto comer uma galinha. Ora, então você fica com os cinco pintinhos que eu fico com a galinha que nesse momento me satisfaz o apetite.

Essa ideia foi uma das pioneiras em 1600 quando ele escreveu isso, mostrando como a aritmética, na verdade, está associada à ideia de posse, à ideia de alguém ter mais que o outro. Vem sendo muito discutido que esse foi um dos grandes erros iniciais da civilização, que é posse pela posse. Eu posso mais, eu quero mais, eu vou atrás de mais. E com isso, claro, destruímos o outro, destruímos o equilíbrio social, destruímos o planeta.

Frei Vicente do Salvador reconhece que os indígenas aqui do Brasil, nos mostravam um modelo de civilização alternativa ao que se desenvolveu na Europa. Isso é bem ilustrado num filme de Kevin Kostner, de 1990, Dança com Lobos. Em 2010, Joselita Macedo Filha publicou sua tese “Dança com Lobos – A Rua dos Meninos e Meninas de Rua” (Apropriação do espaço Urbano pelos Meninos e Meninas de Rua), contextualizada nas praças públicas de Salvador.

Então são coisas que a gente procura entender, examinando muito amplamente a evolução do conhecimento e comportamento em todas as áreas, em todas as culturas. É uma proposta muito ampla, reconheço, e por isso muito do que escrevo está incompleto. É uma pesquisa em andamento, que vem me ensinando muitas outras coisas. E tenho muito a aprender. Por isso prefiro chamar Programa Etnomatemática.

Então, às vezes não interessa se conhecer a Etnomatemática dos povos andinos. Por exemplo, o que os peruanos de hoje vão fazer com os quipus? Mas é muito importante, mostrar como seus antepassados desenvolveram a sua maneira de entender, de registrar o mundo. Um peruano deve sentir orgulho de saber que seus antepassados Incas faziam isso. Mais avançado do que se fazia em todo o mundo daquela época, que orgulho que o peruano deveria ter. Mas o que fazer com isso? É bonito, é lindo, é interessante mostrar. Mas no mundo globalizado, que importa competência com os quipus? O que é que aquilo contribui para o mundo globalizado? Nada. Mas o exemplo pode contribuir muito para uma sociedade alternativa, pode servir de base e provocar novas ideias. Assim, a decolonização procurando recuperar raízes, pode contribuir com ideias novas para uma nova civilização.

GETUFF - O risco que existe é virar algum tipo de mercadoria também, não é? Tudo hoje em dia é mercadoria, não é?

D`Ambrosio - Isso é uma coisa irreversível. Isso vai acontecer. Esse processo, essa civilização é equivocada. Ela está ameaçada, mais rápido do que qualquer outra. Afinal, são só seis milhões de anos que o homem está na Terra, é pouquíssimo. Outras espécies duraram centenas de milhões. Será que somos o prenúncio de uma nova espécie?

GETUFF - Minha pergunta está relacionada à BNCC que tem sido vista como um processo de colonização pelo fato de que a nossa base foi montada, segundo diversos autores, adaptada pela Base da Austrália. Até que ponto isso tende a diminuir a possibilidade de que a Etnomatemática seja uma base para propostas que fujam desse processo homogeneizante que visa padronizar?

D`Ambrosio - Se eu tivesse algum poder de fazer uma mágica, acabaria com todos os programas. Base Nacional Comum Curricular é uma bobagem tão grande, é inconcebível que se faça isso. O currículo é definido e priorizado de acordo com o ambiente em que está se dando o processo escolar. É uma imposição, é uma autoridade com objetivos muito claros que a gente sabe o que é. Controlar etc. O que se faz em educação? O que se faz em educação é deixar a criança pensar, criar, dar oportunidade, provocar, fazer coisas. É claro, se você quer endereçar isso para a Matemática, é fazer coisas de matemática. Começa a fazer medições e aí você começa a colocar algumas questões. “Puxa, que interessante essa parede aí que subiu assim. Como será que o sujeito fez essa parede subindo direitinho na vertical?” Não precisa contar para a criança como. Pergunta para ela como ela fez. E aí ela vai fazer Etnomatemática da boa. Estudar a Etnomatemática dos pedreiros que é uma coisa, uma área bem trabalhada, tem várias teses sobre Etnomatemática dos pedreiros. Como eles conseguem, sem ter ido para a escola, sem ter formação, etc.? Como é que eles conseguem fazer uma casa? Claro, eles desenvolvem o seu conhecimento, às vezes fazem erros, trocam ideias com o outro. Isto acontece em todas as áreas profissionais, acadêmicas, nas artes e nas humanidades. Nenhuma BNCC contempla essa multiplicidade de provocações para que um aluno, em qualquer nível de aprendizagem, desperte para sua vocação e criatividade. Se uma criança está junto com outra numa classe, um importante resultado é trocar ideias em algo de interesse comum. Se a criança tem um celular, acho que toda criança tem, ela diz “Puxa vida eu lembro do meu amigo que estava pensando também como é que se construiria a casa”, aí telefona para o amigo durante a aula. É normal, todos devem se comunicar, comunicar com o que está próximo, ao lado. O professor diz “Não menino, não pode conversar durante a aula”. Por que não? E o professor acha que isso perturba e faz faltar tempo para cumprir o programa que a base nacional pede. Como pode? Desse jeito não se tem educação, o que se tem é doutrinação, disciplinação. E com isso, formamos indivíduos sem nenhuma capacidade crítica, sem nenhuma capacidade de reflexão sobre o que está se passando, sobre o que ele representa no contexto. Não tem capacidade. Ele pensa “Como eu vou resolver este problema?” E espera as instruções que vêm de um professor, de um mestre, de um chefe. Tudo isso eu acho que tem que ser analisado quando discutimos currículos oficiais. É por aí.

GETUFF - O senhor toca num ponto que o Claudio começou na entrevista, falando do poder libertador da Etnomatemática. Eu percebo esse poder na formação de professores. Por exemplo, com as pedagogas. Muitas vêm de origem mais simples, algumas, por exemplo, foram alunas da EJA, mas não falam, silenciam. E quando elas entram em contato com a Etnomatemática, se identificam muito porque veem valorizados através das pesquisas que a gente traz, saberes que estão muito próximo delas, às vezes de uma avó, de uma mãe, e aquilo é muito libertador. Até começam a gostar um pouco de matemática. Isso é muito bom.

D`Ambrosio - Etnomatemática é libertadora. Não deixa de ser uma forma de insubordinação para se sentir livre. Você vê o que está em volta e trabalha com o que é.

D`Ambrosio - (Comentário devido a uma instabilidade e perda momentânea na nossa comunicação em rede) – Isso mostra que no mundo, mas pensando especialmente aqui no Brasil, deve-se dar mais atenção para a tecnologia de comunicação. Como é possível dizer para uma criança, sobretudo agora no Covid-19, que ela tem que acompanhar as aulas a distância pelo computador/internet se o computador/internet pode falhar. Isso para não falar dos desprivilegiados que não tem computado/internet. Esse é um dos aspectos mais sérios dessa crise da pandemia, particularmente na educação à distância. Amplia enormemente o número de excluídos. O que fazer?

GETUFF - Existe um conhecimento identificado corretamente por nós como conhecimento dominante, utilizado pelo poder dominante nessa estrutura que se chama capitalismo; as ideias, os saberes são todos orientados por esse sistema político-econômico de organizar a vida... Entretanto, dentro desse sistema, esse conhecimento, que, de fato, é apropriado, ainda é conhecimento...

D`Ambrosio – É justamente isso. É reconhecido como correto, como certo pelo poder dominante. E o poder dominante é fruto desse mesmo conhecimento. Por isso eu introduzo o conceito das gaiolas epistemológicas. Você tem um conhecimento que se desenvolve dentro de uma gaiola, e quem controla a gaiola é engaiolado. Os engaiolados reconhecem um poder, reconhecem que aquilo é correto, etc. Quem cria os mecanismos de reconhecimento? Eles mesmos. Eles mesmos. A realidade no seu todo é extremamente complexa, cada indivíduo é de uma complexidade total, ou então os grupos sociais, eles não têm voz por quê? Tem um que tem voz dominante que sai desse grupo. Esse é o dominante. Então é por aí que eu encaminho a discussão. A questão maior é essencialmente quem construiu as gaiolas, que sustentam as gaiolas? Essa é uma proposta para discutir capitalismo.

GETUFF - A gente queria agradecer, Ubiratan. Vamos fazer o possível para extrair da sua fala coisas novas, coisas que apontem caminhos, porque a gente vive um momento novo, um momento de transição certamente histórica. Que a gente consiga conversar muitas vezes pela frente. Muito obrigado.

D`Ambrosio - Olha, é um privilégio para um “velhote” falar e ser ouvido por jovens. Agradeço muito essa oportunidade e quando quiserem conversar..., me dá essa alegria.

GETUFF - Professor, obrigado mais uma vez, pela aula, por compartilhar conosco as suas ideias, seus conhecimentos. Estou me sentindo privilegiado de ter participado aqui desse encontro. Muito obrigado.

GETUFF - E quem saber fazer uma participação especial sua numa reunião no GETUFF. Obrigada.

D`Ambrosio - Com prazer.

Notas

[1] Essa entrevista foi realizada no modo online em 23/6/2020, no Rio de Janeiro, em meio à pandemia de Covid 19.
[2] Maria Cecilia Fantinato (UFF) e Adriano Vargas Freitas (UFF) também participaram da realização da presente entrevista pelo GETUFF, Grupo de Etnomatemática da UFF, do qual fazemos parte.

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