Artigos Cientificos

Um estudo de propriedades topológicas desenvolvidas na elaboração de incisos em superfícies curvas: uma leitura decolonial

A topological property study developed in the process of engraving into curved surfaces: a decolonial reading

Un estudio de propiedad topológica desarrollado en la preparación de incisiones sobre superficies curvas: una lectura descolonial

José Ricardo Souza Mafra 1
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil

Revista de Educação Matemática

Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil

ISSN: 2526-9062

ISSN-e: 1676-8868

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 18, núm. 2, e021046, 2021

sbem.sp.revista@gmail.com

Recepção: 26 Junho 2021

Aprovação: 18 Agosto 2021

Publicado: 03 Setembro 2021



DOI: https://doi.org/10.37001/remat25269062v18id613

Resumo: O artigo apresenta um estudo realizado, com base em pressupostos da perspectiva etnomatemática e elementos teóricos pautados na decolonialidade. Tem como objetivo principal, discutir algumas propriedades topológicas, evidenciadas em técnicas e processos durante a produção de representações iconográficas, na forma de incisões, em cuias artesanais. A opção metodológica ocorreu a partir de pressupostos da pesquisa etnográfica, durante o período em que o pesquisador esteve convivendo com artesãs, residentes na região do Aritapera, município de Santarém, Estado do Pará, com base em um descritor de vivências, técnicas e processos utilizados na configuração e elaboração destas cuias artesanais. A configuração de análise e inferência de resultados assumiu que o substrato cognitivo de produção destas representações está relacionado com determinadas propriedades, as quais denominamos de topológicas, projetando, assim, uma espécie de movimento holístico e transdisciplinar. Além disso, concluímos que estes sistemas de representações locais, do ponto de vista social e instrumental, atuam como um catalizador de produção de conhecimentos e de saberes diversificados e expansivos, apesar de estarem em permanente mutação, em virtude da mudança social e cultural inevitável. Este resultado projeta consequências, do ponto de vista decolonial: a necessidade de pensarmos soluções importantes para o equilíbrio, sustentabilidade e permanência de práticas socioculturais, além de afastarmos a destruição ou desaparecimento destas práticas, por completo.

Palavras-chave: Etnomatemática, Práticas socioculturais, Propriedades cognitivas, Cuias artesanais.

Abstract: The aim of this work is to discuss some topological properties, evidenced in techniques and processes during the production of iconographic representations, as incisions, in handcrafted gourds. The methodological option was ethnographic research and the configuration of analysis assumed that the cognitive substrate of production of these representations is related to the production of artisanal knowledge, acting as a kind of catalyst for the generation of knowledge and diversified and expansive knowledge, despite being constantly changing, due to the inevitable social and cultural change.

Keywords: Ethnomathematics, Sociocultural practices, Cognitive properties, Artisanal gourds.

Resumen: El artículo presenta un estudio realizado, basado en supuestos desde la perspectiva etnomatemática y elementos teóricos basados ​​en la descolonidad. Su principal objetivo es discutir algunas propiedades topológicas, evidenciadas en técnicas y procesos durante la producción de representaciones iconográficas, en forma de incisiones, en calabazas artesanales. La opción metodológica se basó en los supuestos de la investigación etnográfica, durante el período en que la investigadora convivía con artesanos, residentes en la región de Aritapera, en el municipio de Santarém, estado de Pará y se basó en un descriptor de experiencias, técnicas y procesos utilizados en la configuración y elaboración de estas calabazas artesanales. La configuración de análisis e inferencia de resultados asumió que el sustrato cognitivo de producción de estas representaciones está relacionado con ciertas propiedades, que llamamos topológicas, proyectando así una especie de movimiento holístico y transdisciplinario. Además, concluimos que estos sistemas de representaciones locales, desde un punto de vista social e instrumental, actúan como catalizador para la producción de conocimientos y saberes diversificados y expansivos, a pesar de estar en constante cambio, debido al inevitable cambio social y cultural. Este resultado proyecta consecuencias, desde un punto de vista descolonial: la necesidad de pensar en soluciones importantes para el equilibrio, la sostenibilidad y la permanencia de las prácticas socioculturales, además de prevenir la destrucción o desaparición de estas prácticas, en conjunto.

Palabras clave: Etnomatemáticas, Prácticas socioculturales, Propiedades cognitivas, Calabazas artesanales.

1. Introdução

Sabemos que – sob uma perspectiva antropológica - a produção e disseminação de conhecimento está, de certa forma, associada às diversas interações possíveis entre seres humanos e o meio do qual fazem parte. A aprendizagem, por conseguinte, se manifesta através de um entrelaçamento envolvendo o fluxo de informação, conhecimento e saber. As informações que constatamos e abstraímos estimulam nossas estruturas mentais, movimentando nosso organismo, corpo, esferas dramáticas e cognitivas. É com base nessa interação entre informação, conhecimento e saber que nos constituímos sujeitos epistêmicos.

Tais considerações, atribuídas, em parte, à elaboração de uma linguagem matemática associada a constructos simbólicos, projetam regras, expressões, símbolos e vocábulos próprios, inerentes a uma determinada espacialidade e territorialidade. Assim, os propósitos deste artigo, repousam em nossa capacidade de desenvolver uma reflexão sobre investigações de representações e propriedades simbólicas, resultantes da gravação de padrões de incisos realizados em cuias artesanais, produzidas nas regiões ribeirinhas de Santarém. Para este estudo, assumimos que o substrato de produção destas representações, repousam em algumas propriedades topológicas, as quais estabelecemos como um referencial de análise, do ponto de vista social e instrumental.

Além disso, a discussão centra-se também na capacidade de delinear processos de construção de registros escritos, nestas superfícies que compõem tais cuias regionais, procurando estabelecer uma conexão deste estudo e pressupostos advindos do decolonialismo, de forma a propiciar elementos de discussão satisfatórios, das práticas estabelecidas no contexto da investigação, elencando parâmetros de dinâmica social refletido em trocas e interações sociais diversas.

2. Estudos etnomatemáticos e a perspectiva decolonial

A inserção gradativa de proposições e discussões coerentes com os desafios e dilemas vivenciados em nossa sociedade se apresenta de maneira bastante evidente, em produções e reflexões propostas nas pesquisas acadêmicas. Sabemos da força e da importância da matemática para a leitura e interpretação crítica do mundo em que nos inserimos. Sabemos, mais ainda, da necessidade e importância do domínio dessa matemática por parte dos nossos alunos, para que consigam vencer os desafios que se lhes apresentam no dia-a-dia. Com isso, uma compreensão satisfatória do mundo – e não nos referimos somente através de conhecimentos matemáticos – tende a ser relevante, à medida que o encontro de culturas se torna inevitável, sem que haja a sua sobreposição ou uma reivindicação de supostas superioridades.

Saberes legitimados, validados, praticados e disseminados no interior das diferentes instituições e comunidades que compõe a nossa sociedade, podem fornecer uma prerrogativa importante para a valorização de conhecimentos locais, considerados por muitos como periféricos. Assumindo a existência de diversidades, proporcionadas pela leitura dos processos de construção cognitivos envolvidos nesses conhecimentos, podemos pensar em respostas às nossas diferentes inquietações. Nas palavras de Silva (2004, p. 197), não se trata apenas de simples valorização, mas,

Encarar as culturas dos grupos dominados de uma forma antropológica, como uma manifestação e expressão de formas de organizar a vida social que existem ao lado de outras, igualmente válidas. Nessa perspectiva, não se trata de ‘partir da cultura dominada’, mas de interrogá-la, questioná-la, historicizar-la, da mesma forma que se deve fazer com a cultura dominante. Não é uma questão de superá-la, para entrar em outra, mas de colocar questões que revelem sua história, a história que produziu as presentes identidades sociais e as colocou em relação subordinada na configuração social existente.

Em adição, tem-se em vista que “A verdade consiste na representação fiel ou, pelo menos, o mais aproximada possível da realidade que existe, independentemente das formas que assume e dos processos através dos quais é produzido o conhecimento que se tem dela.” (SANTOS, 2004, p. 18). Assim, uma configuração de um modelo de representação da realidade, em nosso ponto de vista, perpassa por distintos processos cognitivos capazes de produzir conhecimentos como, por exemplo, o conhecimento matemático, e que reflita uma parte integrante desse mosaico de representações.

O entendimento dos significados existentes que concorrem para a produção de conhecimentos, pensa se, estarem baseados em configurações de origem antropológica e social. No entanto, para que consigamos de fato validar as nossas suposições acima descritas, não basta um único estudo a ser realizado em comunidades de base.

As causas para que tudo isso ocorra tendem a encontrar significados na história e nos processos de formação da sociedade moderna, tendo em vista que a própria sociedade foi (e está sendo) moldada por estruturas de poder perversas. No entanto, considera se que há uma multirreferencialidade de saberes e que não há uma convergência única para a ideia do que é válido e verdadeiro para o aprendizado de conceitos e domínios de técnicas, a partir de um único referencial. Há diferentes manifestações de conhecimentos derivadas de comunidades distintas e que muitas vezes beiram a periferia e a marginalidade, frente ao saber institucionalizado. Conforme os dizeres de Santos et al. (2005),

É insustentável a situação de, por exemplo, as ciências sociais continuarem a descrever e interpretar o mundo em função de teorias, de categorias e de metodologias desenvolvidas para lidar com as sociedades modernas [...] quando a maioria das sociedades existentes não só apresenta características e dinâmicas históricas diferentes, gerando as suas próprias formas de conhecimento das suas experiências sociais e históricas e produzindo contribuições significativas para as ciências sociais, ainda que remetidas para as margens destas. (SANTOS et al., 2005, p. 23)

Nesse sentido, o advento ou a implementação de uma única perspectiva de construção representativa do mundo, a partir dos pressupostos sustentados pelas teorias que descrevem as sociedades modernas, acabam por acentuar ainda mais as distâncias entre o reconhecimento de saberes e formas de legitimação de conhecimentos, limitando assim a capacidade relativa em conhecer e entender o mundo a qual vivemos.

Assim, a pluralidade e o intercâmbio dos elementos conceituais existentes, técnicas e modelos de representação, baseados em diferentes formas de conhecimento se mostra determinante para uma compreensão mais clara das dinâmicas envolvidas no encontro, fusão ou desaparecimento de culturas, consideradas periféricas. Nas palavras de Nunes (2004),

Não é claro, ainda, até que ponto a propensão para distinguir os ‘etnos-saberes’ dos ‘outros’ e os ‘nossos’ saberes científicos poderá ser duravelmente contrariada pela consideração simétrica dos vários tipos de conhecimentos como sendo, sem exceção, parciais e situados, por isso, dignos de igual consideração e respeito. (NUNES, 2004, p. 68)

Em um contexto de pesquisa e de participação coletiva entre os envolvidos na pesquisa, estas relações ainda não se fazem distintamente perceptíveis em um primeiro momento. Mostrar o quanto as estruturas de poder atuais - sejam elas existentes em uma dimensão microscópica ou macroscópica – conspiram de forma a ocultar diferentes percepções de saberes e que – erroneamente - perpassa pela pressuposição de qual saber é o mais “ideal” ou “certo”, em relação a outros. Tais estruturas tendem a manter o seu status de diligência e de gerência de poderes, não obstante, o fato de se falar em diversidades de saberes implica, de certa forma, deslegitimar um conhecimento ou saber, considerado único, ordenando assim um movimento em direção a uma ecologia de saberes, conforme os dizeres de Santos et al. (2005):

A transição da monocultura do saber científico para a ecologia dos saberes será difícil porque, tal como aconteceu no processo de consolidação do paradigma da ciência moderna, envolve não só questões epistemológicas, como também questões econômicas, sociais e políticas. (SANTOS et al., 2005, p. 101)

Ou seja, não basta apenas o desenvolvimento e a indicação de várias bifurcações possíveis, em termo de desenvolvimento de saberes. A questão é que, se de fato, “O desafio do conhecimento é, antes, o de procurar a relação, adequada a cada situação, entre a expectativa e a experiência.” (WAGNER, 2004, p. 119), significa dizer que precisamos de uma (re)configuração sociológica muito ampla, capaz de mover e desenvolver significados e articulações, com base em uma ecologia de saberes, capaz de transformar o mundo, ou melhor, as pessoas que conduzem o mundo.

A expansão da dimensão de problemáticas mais gerais sobre situações e problemas que convergem para o destino de nosso ambiente local, precisa ser equacionado como um fator de discussão permanente por parte dos envolvidos, delegando assim uma partilha de responsabilidades necessárias. Por conseguinte, o diferencial existente - no ponto de inflexão entre o reconhecimento e legitimação das tradições diversas, das técnicas e dos processos gerados, sob uma perspectiva etnomatemática e, no limite, o completo desaparecimento ou a “morte” (quiçá, esperemos que não ocorram mais) dos conhecimentos tradicionais e populares - irá determinar a epistemologia remanescente capaz de conduzir o mundo à comunhão de valores, de paz e diversidade ou de confirmar o saber moderno ou cientifico como o modelo de desenvolvimento (ou de destruição) do planeta.

3. O contexto da pesquisa e elementos metodológicos utilizados

Os dados que permeiam esta investigação foram obtidos com artesãs que vivem na região do Aritapera (MAFRA e FANTINATO, 2016), localizada às margens do rio Amazonas, na cidade de Santarém, estado do Pará, no norte do Brasil. A região do Aritapera compõe um conjunto de comunidades. Essas comunidades são: Enseada do Aritapera, Centro do Aritapera, Carapanatuba, Cabeça D’onça e Surubim-Açu, conforme podemos observar na Figura 1.

Dentre os muitos ofícios artesanais e atividades rurais desenvolvidas na região, a produção de cuias artesanais é uma prática desenvolvida a bastante tempo, pelas mulheres da região (MADURO, 2013). A cuia é um fruto originado da cuieira (árvore tradicional da região Amazônica) e que apresenta formatos e dimensões diversificados, podendo assumir a dimensão, do ponto de vista de uma leitura matemática, de uma esfera, oval ou levemente achatada. É utilizada, principalmente, para beber o tacacá (caldo de origem indígena feito com a goma da mandioca, camarões e tucupi temperado com alho, sal e pimenta, a que se adiciona jambu, erva com a propriedade de provocar sensação de formigamento na boca), mas, com o passar dos tempos muitos outros artefatos foram sendo criados, utilizando a matéria-prima original.

Mapa da
Região do Aritapera, Santarém/PA, Brasil
Figura 1
Mapa da Região do Aritapera, Santarém/PA, Brasil
Fonte: CARVALHO (2011, p. 28)

As etapas ou fases de produção destas cuias artesanais, englobam a coleta natural das cuias, o corte e raspagem de suas superfícies curvas, o tingimento e a preparação final (secagem) para a riscagem ou gravação de representações simbólicas, através de incisões na superfície da cuia.

A produção destas cuias artesanais sempre foram objeto de curiosidade e conhecimento, por parte de diversos seguimentos da sociedade, retratadas em diferentes categorias de produções: estudos e pesquisas realizadas com as artesãs, documentários e publicações diversas. (MAFRA e FANTINATO, 2016; FANTINATO e MAFRA, 2017).

A ASARISAN – Associação das Artesãs Ribeirinhas de Santarém, organiza as artesãs da região, de forma coletiva, cuja formação data de 2003. Esta associação congrega residentes das comunidades, e tem como um de seus objetivos a disseminação e divulgação do saber fazer artesanal refletido nas representações gravadas nas cuias.

Na comunidade de Aritapera, a ASARISAN apresentou uma perspectiva de vivência e organização social, através de um trabalho essencialmente coletivo e participativo. Assim, foi possível desenvolver um acompanhamento próximo a elas, entre os anos de 2015 e 2017, através de uma vivência participante que assumiu elementos e características de uma pesquisa etnográfica, como uma descrição detalhada e densa (GEERTZ, 2008), a partir de suas atividades laborais.

A investigação tomou como pressuposto básico, a imersão do pesquisador no contexto de pesquisa (BOGDAN e BIKLEN, 1994), projetando o pesquisador-observador como o instrumento determinante na recolha e posterior análise dos dados. Assim, foi possível apreendermos os procedimentos e as técnicas instrumentais utilizadas no desenvolvimento de suas atividades laborais. As técnicas de coleta e organização de dados, empregadas nesta pesquisa, foram a observação com anotações em diário de campo, a entrevista livre, a fotografia e a filmagem. Os registros de gravações foram devidamente autorizados pelas artesãs participantes da pesquisa.

4. A propósito de algumas propriedades topológicas evidenciadas nas incisões de cuias artesanais

Com base na pesquisa com características etnográficas, desenvolvida, fomos em busca de uma compreensão das raízes históricas e culturais, cujo foco foi a produção de cuias regionais, pelas artesãs do Aritapera. Esta produção transforma e potencializa uma dinâmica de vida social da população local, na forma de saberes e práticas artesanais diversas. Sabemos que, por diversos motivos, o desenvolvimento de saberes, embora enraizados no interior de uma população local, sofrem alterações com o tempo chegando, no limite, a desaparecer.

Em Greenfield (2009, 2016), encontramos elementos teóricos, de forma a subsidiar discussões em torno de diferentes ambientes socioculturais, de uma maneira não estática, más sim, do ponto de vista da dinâmica inerente ao fluxo de mobilidade e trocas de conhecimento formais e informais. A autora faz referência as sociedades e culturas, e a forma como elas interagem entre si. Essa interação, em tese, proporciona mudanças significativas de valores sociais e culturais, à medida que os processos e dinâmicas de comportamentos e socialização projetam a fusão ou o imbricamento de valores culturais, especialmente em ambientes de aprendizagem, sejam eles, ambientes formais ou informais, mudando, dessa forma, os caminhos epistemológicos de desenvolvimento social e dinâmica cultural.

Em se tratando da região Amazônica, mais especificamente a região oeste do Pará, local em que habitavam os Tapajós, cuja população, de origem indígena, viviam nessa área, é de se esperar que haja lacunas desconhecidas e suprimidas, na linha do tempo, em matéria de elementos e substratos culturais pertencentes à cultura tapajônica.

Entendemos que, do ponto de vista “local”, a consciência de permanência da memória de um povo e, consequentemente, sua cultura, saberes e representações associadas, ganham força quando se projetam estratégias de manutenção de culturas, como um princípio ativo e necessário, contra seu desaparecimento por completo.

Com base em nossas investigações e observações etnográficas, presenciamos a capacidade altamente diversificada na variação de modelos, ilustrações e padrões, nas incisões realizadas nas cuias produzidas. A possibilidade da relação direta entre os saberes tradicionais desenvolvidos pelas práticas habituais das artesãs e as conexões estabelecidas entre os conhecimentos formais e institucionalizados, em algum momento de suas vivências sociais, projetam uma impregnação de elementos de propriedades conceituais advindas de diferentes áreas de conhecimento, tais como a antropologia, a sociologia e a produção de técnicas ou ideias matemáticas específicas.

Algumas destas propriedades, doravante denominadas de propriedades topológicas, dizem respeito a forma ou configuração assumida, quando da produção e elaboração de estratégias e técnicas de marcação dos incisos, nas cuias artesanais. Dado que estas cuias possuem superfícies curvas, é notável a capacidade de organização e configuração de mecanismos instrumentais de marcação e escolha de referenciais, para a elaboração dos incisos. Esse aspecto denota uma propriedade intrínseca de marcação de pontos e dimensionamento de medidas semelhantes à de uma superfície plana, embora acreditemos que suas propriedades cognitivas de concepção estejam estabelecidas em propriedades semelhantes.

Durante as etapas de elaboração e produção de cuias, pudemos observar a reunião de diferentes manifestações de conhecimento e não apenas aquelas relacionadas aos aspectos etnomatemáticos. Diferentes ações e interações são organizadas, de forma conectada, no momento em que ocorrem os processos de atividades laborais, caracterizando uma dinâmica ou holística de comportamentos e configuração de cenários (espaços topológicos) de criação. Estes cenários ou espaços, entendemos que estejam carregados de propriedades, ações e percepções, organizadas em função do trabalho desenvolvidos por elas (no caso, a produção de cuias). Assim, as propriedades topológicas - a qual assumimos nesse trabalho - tem a haver com convergência e estruturação de pensamos abstratos de significação e representação, sob uma perspectiva antropológica do conhecimento.

Foi possível observar e indagar sobre muitas situações e eventos de interação entre as artesãs, de forma a percebermos o nível de configuração espacial estratégica para a produção dos incisos e, de que forma, um fluxo ou dinâmica de trocas de informações era possível obter. Assim, foi possível identificar fluxos de conhecimentos, embora, muitas vezes, distintos, entre as mesmas, por conta das suas especificidades, tais como as ideias matemáticas utilizadas por elas, em muitas ações envolvidas, na produção de cuias.

É importante frisar aqui que a maior parte da configuração de estratégias de marcação, nas cuias, são realizadas por aproximação, envolvendo a localização de pontos e referenciais de localização, de forma a propiciar a ligação (riscos) destes pontos, de forma visual. Durante a convivência com as artesãs, presenciamos como as mesmas manejam elementos de aspectos qualitativos, tais como estimativas de medidas aproximadas, através da visualização natural. Em algumas situações, o apoio dos dedos, como manejo de produção, e em outras vezes, a partir da localização de referenciais nas próprias cuias ou utilizando instrumentos, como, por exemplo, o compasso.

O processo de marcação das cuias é organizado em função das incisões e registro dos traçados, originalmente de natureza indígena. Assim, a configuração de duas circunferências paralelas na base mais larga das cuias, projeta um limite de referências para o registro dos padrões geométricos – com base no espaço delimitado entre as circunferências – ordenando assim, uma propriedade topológica importante, utilizada na confecção dos incisos na superfície curva, das cuias artesanais.

Em contraste, elencamos aspectos que foram incorporados gradativamente, no saber-fazer das artesãs, de tal forma que pudemos perceber como os mesmos se apresentam adaptados ou incorporados ao saber local. No trabalho desenvolvido por Fantinato e Mafra (2016), elencamos uma discussão sobre esses aspectos, além de exemplos destas interações evidenciadas. Indicamos aqui, algumas destas: i) instrumentos metálicos e de fabricação industrial, para a raspagem das cuias e configuração das incisões, nas cuias; ii) utilização de uma base de madeira projetada, para riscar cuias; iii) incorporação de padrões tapajônicos e florais, ao longo do tempo, no portfólio de produção das artesãs.

Dessa forma, os saberes tradicionais de origem essencialmente indígena, desenvolvidos no ofício de produzir as cuias, sofreram uma interação gradativa, com saberes e técnicas alternativas, sendo que, alguns aprendidos através de ensino mais formal. Um exemplo sobre essa consideração, foi uma oficina ministrada para as artesãs, por meio do Projeto Cuias de Santarém (CARVALHO, 2011, 2012), realizado a partir de 2002, o qual buscou, dentre outros objetivos, recuperar a memória e identidade, refletidas nas incisões que ornamentam as cuias. Além disso, contribuiu para uma maior amplitude imaginária e representativa do repertório de registros iconográficos, produzidos por elas, gerando assim novos saberes, refletidos em padrões de ilustrações alternativos e muito variados.

Os conhecimentos advindos destas interações proporcionaram uma gama de saberes novos em relação aos traçados tapajônicos, de tal maneira que foram incorporados pelas mulheres, no exercício de sua prática. Em Fantinato e Mafra (2016), encontramos elementos de evidências, a partir do depoimento da artesã Leia, que corroboram com nossas inferências:

Léia: Cada uma aqui no nosso ponto tem um tipo de [...] (confecção de cuia). A Laís (referindo-se a outra artesã, de outra comunidade) conhece tudinho, pela pinta. Ela já conhece aqui quando eu que faço, é diferente. Ela ainda não tinha visto eu fazer esse tipo.

Pesquisadores: A Sra. é especialista...

Léia: Tá igual (a outra cuia)?

Pesquisadores: De jeito nenhum

Léia: Com minha mãe, naquele tempo já apareceu porta cartão, [...] (outros tipos de peças) aí tinha que usar o compasso, para marcar.

Pesquisadores: A Sra. usa o compasso quando? Ou não usa mais?

Léia: ainda uso, sempre. Ainda faço.

Léia: [...] vou fazer essa aqui... (realizando traçado com o compasso)

Pesquisadores: A Sra. usa sempre (muito) o compasso?

Léia: Eu uso sempre. Elas pedem assim para fazer um xaxim, outra coisa, sempre eu vou inventado uma coisa.

(comunicação pessoal, 05 de agosto de 2015)

(FANTINATO E MAFRA, 2016, p. 192)

Ainda em Fantinato e Mafra (2016), verificamos que a relação entre a escolha dos padrões - dentre o repertório produzido e utilizado pelas artesãs - é estabelecida a partir de uma multiplicidade de fatores: inspiração, imaginação, trabalho coletivo e aprendizagens mútuas. Do ponto de vista topológico, trata-se de uma atividade que envolve uma configuração de aspecto artístico e espacial, diretamente conectado, seja em grande ou pequena escala, a elementos de decisão relacionados com o formato e/ou dimensão das cuias a serem produzidas.

Todo esse processo de movimento cognitivo, organizado através dos saberes das artesãs, fornece tipologias distintas de ornamentações:

i) os padrões florais, apresentados na Figura 2, produzidos através de adornos e alegorias refletidas em elementos figurativos e floridos que remetem a aspectos e lembranças históricas, familiares ou da própria natureza de vivência.

Exemplos de padrões
florais, de incisos em cuias
Figura 2
Exemplos de padrões florais, de incisos em cuias

ii) os padrões tapajônicos, apresentados na Figura 3, que refletem elementos diretamente conectados com representações sociais e naturais, originados das heranças da cultura indígena tapajônica.

 Exemplos
    de padrões tapajônicos, de incisos em cuias
Figura 3
Exemplos de padrões tapajônicos, de incisos em cuias

Na pesquisa realizada com as artesãs do Aritapera foi possível verificar como os diferentes elementos relacionados aos conhecimentos diversos se organizam, para a produção e difusão de saberes disseminados na comunidade. A vivência proporcionada, durante a pesquisa, permitiu abstrair subsídios de forma a entender como comportamentos e movimentos relativos do saber fazer das artesãs, estabeleceram vínculos simbólicos e acordos sociais, expansíveis para além do ofício apenas do artesanato, ordenando assim uma diretriz social, que permeia a própria dinâmica de vida e convivência comunitária, na totalidade.

Estes movimentos cognitivos e comportamentais projetam um elemento integrador ou holístico, conforme D’Ambrosio (1993) argumenta, de forma a compreender tais dinâmicas, de uma forma estreitamente conectada com a natureza, as relações sociais estabelecidas na comunidade e, também, com elementos característicos e de ordem relacional com outras “ciências” ou “áreas de conhecimento”, as quais se manifestam com significações diferentes.

Nesse sentido, o conhecimento, emergente destas práticas, apresentam um espectro de abrangência muito mais relacional e imaterial do que o conhecimento formal de técnicas e processos apenas matemáticos. Dessa forma, os processos informais (FANTINATO e MAFRA, 2016), fazem parte desta abrangência e configuram um entrelaçamento de práticas instrumentais, processos cognitivos de transformação no espaço – cujas representações e propriedades são intrínsecas ao grupo de artesãs - de tal forma que os conhecimentos difundidos e saberes elencados estão em permanente mutação. Essa pressuposição entra em ressonância com o que Greenfield (1999) pondera, ao afirmar que diferentes culturas, incluindo seus modos e formas de aprender e difundir conhecimentos, se transformam com o tempo, assumindo ou incorporando padrões culturais distintos, a partir de diversos fatores, sejam eles através de mudanças locais ou mais globais.

É importante afirmar e considerar que estas estratégias e técnicas utilizadas, foram possíveis de serem registradas após estipulamos uma espécie de um contrato de pesquisa entre os pesquisadores e os pesquisados: era nosso objetivo compreender o saber e o fazer das artesãs, ou seja, como eram produzidos os seus diversos conhecimentos interconectados: técnicas, estratégias, linguagem e comunicação empregada nos processos. Assim, a participação e a convivência com as artesãs, após sua devida autorização, eram fundamentais para o alcance dos propósitos acadêmicos, dos pesquisadores envolvidos.

Em contrapartida, realizamos uma encomenda de muitas cuias e outros artefatos, visando a venda e lucro, por parte delas, o que gerou um benefício para elas, do ponto de vista econômico, além de que, foi possível projetar perspectivas e desdobramentos de ações locais futuras. Estes encaminhamentos acabaram beneficiando a todos os envolvidos na pesquisa. A convivência coletivas entre os pesquisadores e as artesãs geraram várias questões e reflexões, tais como: a) a quantidade limitada de artesãs realizando o trabalho de elaboração das cuias artesanais; b) o pouco interesse dos menores em continuar o que é feito, de forma artesanal; c) a migração de jovens para os centros urbanos em busca de estudo e trabalho, principalmente; d) materiais e insumos utilizados no trabalho diário das artesãs, estão cada vez mais difíceis e longínquos de se obter; e) a possibilidade de incorporar no currículo escolar local, os conhecimentos relacionados à produção de cuias, através de uma proposta educacional. Estas questões se mostraram pertinentes, no sentido de se pensar em soluções e propostas de ações, visando a redução de problemáticas e limitações, impostas por diversos fatores.

De modo geral, este contrato foi bom para todos. As artesãs ficaram satisfeitas com a compensação (vendas realizadas, prestígio e valorização) devido ao trabalho realizado, além de se sentirem reconhecidas e respeitadas pelo ofício que desenvolvem. E nós, como pesquisadores, contemplados em nossos propósitos acadêmicos.

5. O que estas propriedades nos permitem afirmar, sob um ponto de vista decolonial?

Ao refletir sobre os depoimentos das artesãs, tentamos projetar uma discussão, com base nas questões inerentes a seus conhecimentos e como os mesmos se entrelaçam com base nos seus movimentos cognitivos e sistemas de representações sociais elaborados. Além disso, a relação entre as propriedades estabelecidas, em seu saber-fazer projeta elementos de compreensão sobre as configurações espaciais assumidas e refletidas em diferentes movimentos relacionais às suas atividades técnicas e instrumentais.

Assim do ponto de vista da holística, a percepção transdisciplinar é essencial para podermos compreender e perceber as múltiplas relações associadas ao seu contexto de trabalho e de convivência. Aspectos estes, relacionais com fatores de ordem social, cultural, econômico, geográfico e histórico.

Estes movimentos de articulação projetam algumas considerações pertinentes: não estamos falando de comparação e/ou sobreposição de saberes, conhecimentos culturais e formais. Há diferentes maneiras e estratégias de explicação para determinadas ações e eventos. Como elas operacionalizam e efetivam, através de diferentes sistemas cognitivos e de que forma elas ativam, com base em movimentos informais, sendo carregados de elementos culturais, visões de mundo, crenças entre outros.

Tais movimentos tendem a projetar possibilidades de articulações com outros conhecimentos (movimentos ou iniciativas interdisciplinares). Nesse sentido, a operacionalização de propriedades pode nos ajudar na compreensão de evidências cognitivas de experiências exitosas, próprias de contextos locais, sem perda de prospecção global.

No entanto, a discussão acima aponta para o indicativo de que poderá existir uma nítida relação de tensão entre as estruturas de poder em jogo, especialmente no fato de que conhecimentos tradicionais se combinam ou se modificam a medida em que a aproximação e o encontro de culturas se torna evidente.

Tanto mais as relações existentes entre as práticas e conhecimentos diversos forem passiveis de um entendimento e de um significado antropológico das mesmas, por parte dos atores envolvidos, mais serão as oportunidades de aceitabilidade e de coexistência desses conhecimentos.

Essa afirmação necessariamente tende à aceitação, a assunção e ao implemento gradativo de saberes e conhecimentos diversos, de uma forma natural, inconsciente ou, em muitas das vezes, imposta. Apontar então, a necessidade de convivência e de suporte com a diversidade existente, alerta às pessoas envolvidas, a necessidade de uma compreensão sobre a dimensão política e a dimensão social existente na possível inversão de pressupostos assumidos, a partir de uma postura diferenciada. Nos dizeres de Santos et al. (2005),

Ao conceito de conhecimento ‘local’ subjaz, assim, a noção de que as pessoas que o detêm apenas conhecem um meio muito restrito e que este conhecimento não tem aplicação para além dele. É um saber local, circunscrito. Por seu lado, o conceito de “conhecimento tradicional” remete para a presença de um sistema homogêneo de pensamento, encobrindo que os grupos sociais renovam seus conhecimentos constantemente em função de novas experiências e de novos desafios postos por circunstâncias históricas novas (SANTOS et al., 2005, p. 32-33)

No entanto, é importante frisar a permanente renovação de conhecimento, ou seja, eles de fato aglomeram uma mutação, com o passar dos tempos. Não tanto pelas exigências proporcionadas pelos conhecimentos locais, mas sim pela gradativa fusão e intercâmbio de conhecimentos e técnicas conhecidas tanto pelo conhecimento “local” e “tradicional”.

A perspectiva mostrada em nosso trabalho procura indicar um diálogo permanente em várias direções, tanto quanto forem possíveis as formas de conhecer e de saberes produzidos. Esse diálogo, no entanto, aponta para ponderações e obstáculos a serem analisados, discutidos e resolvidos com o avançar dos estudos que assumimos.

Nesse sentido, as artesãs, de fato, estabelecem um princípio de organização sociológica, mais atuante e mais solidária, refletida na ASARISAN, com base na aceitação da pluralidade diversa de formas de conhecimentos e saberes gerados, na comunidade de Aritapera. As artesãs não vivem isoladas, interagem permanentemente com pessoas dos grandes centros urbanos, pesquisadores e acadêmicos de diferentes níveis de ensino. Além disso, adéquam sua produção às demandas destes centros de forma a se adaptarem as exigências do mercado comercial e de produção, de forma a produzirem subsídios econômicos – tendo o seu ofício artesanal como uma das prerrogativas de subsistência – visando ganhos econômicos. Nada mais junto, em um mundo essencialmente capitalista.

Todavia, é importante pensarmos, falando agora em uma perspectiva decolonial, de como essa relação com as formas de produção e de cultura, projeta implicações e consequências para as diferentes formas de conhecimento manifestadas e reconhecidas em seu meio social e cultural. Diferentes, por existirem registros de representação simbólica e de estruturas de pensamentos configurados, a partir dos diferentes mitos, crenças e linguagens legitimadas, mas idênticas, quanto ao traçado de caminhos de solução, objetivos perseguidos e comunicação solidária. Para Santos et al. (2005):

Ao longo dos séculos, as constelações de saberes foram desenvolvendo formas de articulação entre si e hoje, mais do que nunca, importa construir um modo verdadeiramente dialógico de engajamento permanente, articulando as estruturas do saber moderno/cientifico/ocidental às formações nativas/locais/tradicionais de conhecimento. [...] Em conclusão, pode-se afirmar que a diversidade epistêmica do mundo é potencialmente infinita, pois todos os conhecimentos são contextuais. Não há nem conhecimentos puros, nem conhecimentos completos; há constelações de conhecimentos. (SANTOS et al., 2005, p. 54-55)

De acordo com as palavras de Santos, uma oportunidade de estabelecermos comunicações entre essas constelações de conhecimento é a proposição de oportunidades para o gradativo processo dialógico necessário às mesmas.

Uma pluralidade cultural reflete, de certa forma, uma diversidade de práticas. Essa pressuposição aponta para a incapacidade de generalizações acentuadas em se tratando de explicar as atividades instrumentais imbuídas em suas diversidades de técnicas e de procedimentos ideológicos existentes em diferentes manifestações de conhecimento.

As implicações para efeito do entendimento da ciência do conhecimento são obviamente diretas, no que tange aos aspectos intrínsecos da nossa realidade, pois sabemos que, conforme Visvanathan (2005, p. 209), “A ciência tem que se voltar para a questão da diversidade onde as formas de vida estão desaparecendo, seja uma variedade de planta por dia, ou um idioma por semana.”, ou uma técnica por mês, ou uma etnomatemática por ano, ou uma cultura tradicional a cada século. Nesses múltiplos caminhos assumidos, é importante destacarmos a importância de uma discussão mais acentuada sobre os pressupostos existentes nos conhecimentos considerados rivais, localizados em diferentes regiões do planeta. Conforme afirma Matias (2005):

Deve-se observar ainda que, desde o início, estiveram associados ao movimento de contestação duas categorias de conhecimento tradicionalmente, tidos como opostos: o conhecimento “local” e o conhecimento “global”. A diferenciação entre esses dois tipos de conhecimento, encarados como “rivais”, se assenta no pressuposto de que existem formas de saber que, pela forma como são construídas, são independentes das contingências e das limitações associadas às formas locais de conhecimento, sendo assim considerados como conhecimentos de caráter universal, globalmente impostos às restantes formas de conhecimento. Essa separação, fortemente associada a uma concepção moderna de conhecimento, estabelecida na separação entre ciência e senso comum, permite a desvalorização dos conhecimentos locais, disfarçando-os de manifestações pontuais, pelo que, em contextos de confronto de conhecimentos, estes tendam a ser considerados formas não legitimas de saber. (MATIAS, 2005, p. 260-261)

Assim, tendo como exemplo o trabalho desenvolvido com as artesãs, é possível afirmar a existência de múltiplos caminhos legítimos de saber e conhecer, a medida em que a legitimação desses caminhos sejam validadas, praticadas e disseminadas no contexto global mais amplo. Esse aspecto significa, portanto, a valorização e o reconhecimento legítimo de conhecimentos locais, no sentido de que a investigação proporcionada pela leitura existente dos processos de construção cognitivas envolvidas nesses conhecimentos possa trazer respostas as nossas diferentes inquietações.

A legitimação da diversidade existente de conhecimentos locais, aliado a necessidade e importância da compreensão crítica do significado do saber global ou cientificamente válido para efeito de ensino e aprendizagem, tem uma significância relativamente importante em estudos sobre formas de conhecimentos diversos, a serem discutidos e efetivados em ambientes educacionais. Investigações, nesse perspectiva, conduzidas em diferentes contextos de estudos, podem levar a resultados convergentes ou adjacentes, com as quais pactuamos e acreditamos o que, certamente vai demandar uma discussão profunda sobre o conhecimento e a nossa incapacidade de lidar com situações extremamente dinâmicas e naturais, a partir de uma ótica disciplinar.

São desafios que não são novos, já estão lançados a um certo tempo, mas que ainda não são plenamente explorados a partir de um potencial de discussão maior. A disseminação de estudos e pesquisas futuras, sobre essa perspectiva, aponta um vasto campo de investigação a ser realizado e desenvolvido nas próximas décadas.

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Autor notes

1 Doutor em Educação (área de concentração em Educação Matemática), pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professor permanente do Programa de Doutorado em Educação em Ciências e Matemática (PPGECEM) – Associação em Rede – intitulada Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática (REAMEC) e do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE), da Universidade Federal do Oeste do Pará. Endereço para correspondência: Av. Marechal Rondon, s/n, Bairro Caranazal, Santarém, Pará, Brasil, CEP 68040-070.

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