Artigos Científicos

O saber necessário à prática docente na humanidade digital

The necessary knowledge for teaching practice in digital humanity

Los conocimientos necesarios para la práctica docente en humanidad digital

Carlos Mometti
Universidade de São Paulo, Brasil

Revista de Educação Matemática

Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil

ISSN: 2526-9062

ISSN-e: 1676-8868

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 18, e021010, 2021

sbem.sp.revista@gmail.com

Recepção: 12 Novembro 2020

Aprovação: 16 Fevereiro 2021

Publicado: 24 Fevereiro 2021



DOI: https://doi.org/10.37001/remat25269062v17id482

Copyright Revista de Educação Matemática 2021.

Resumo: São evidentes as transformações que os meios digitais causaram no processo educacional no século XXI. Desde o surgimento de novas mídias, recursos de aprendizagem, até os diferentes formatos para ministrar aulas, o mundo digital opera substancialmente. Assumindo este novo contexto, o qual estabelece novas concepções ontológicas e epistemológicas, buscamos com este artigo apresentar reflexões acerca da problemática do saber necessário à prática docente contemporânea, urgente e emergente, que se sobrepõe sob a forma digital e mediatizada naquilo que definimos por Educação 4.0. Além disso, faz-se necessário a introdução de dois novos conceitos no que tange à prática pedagógica, sendo o primeiro relativo ao saber necessário para àquela – saber mediatizado - e, o segundo, a didática digital inerente ao processo, representada sob a forma de um polígono didático. Ademais, partimos de uma construção histórica para entendermos a dinâmica das transformações educacionais de modo a corroborarmos com os paradigmas que foram predominantes ao longo dos últimos séculos. A fim de desenvolvermos o proposto, utilizar-nos-emos de elementos oriundos de pesquisas científicas realizadas com professores tanto de formação inicial como em serviço, bem como de referenciais teóricos que cotejam com as discussões da literatura atual.

Palavras-chave: Saber docente, Humanidade digital, Formação docente, Educação Matemática.

Abstract: The transformations that digital media have caused in the educational process in the 21st century are evident. From the emergence of new media, learning resources, to the different formats for teaching classes, the digital world operates substantially. Assuming this new context, which establishes new ontological and epistemological conceptions, with this article we seek to present reflections on the issue of knowledge necessary for contemporary, urgent, and emerging teaching practice, which overlaps under the digital and mediatized form in what we define by Education 4.0. In addition, it is necessary to introduce two new concepts with regard to pedagogical practice, the first relating to the necessary knowledge for that - mediated knowledge - and the second, the digital didactics inherent to the process, represented in the form of a didactic polygon. Furthermore, we started from a historical construction to understand the dynamics of educational transformations in order to corroborate with the paradigms that have been prevalent over the past centuries. In order to develop the proposal, we will use elements from scientific research conducted with teachers both in initial training and in service, as well as theoretical references that compare with the current literature discussions.

Keywords: Teaching knowledge, Digital humanity, Teacher training, Math Education.

Resumen: Las transformaciones que los medios digitales han provocado en el proceso educativo del siglo XXI son evidentes. Desde la aparición de nuevos medios, recursos de aprendizaje, hasta los diferentes formatos de impartición de clases, el mundo digital opera sustancialmente. Asumiendo este nuevo contexto, que establece nuevas concepciones ontológicas y epistemológicas, con este artículo buscamos presentar reflexiones sobre la cuestión del conocimiento necesario para la práctica docente contemporánea, urgente y emergente, que se solapa bajo la forma digital y mediatizada en lo que definimos por Educación 4.0. Además, es necesario introducir dos nuevos conceptos con respecto a la práctica pedagógica, el primero relativo al conocimiento necesario para ello - el conocimiento mediado - y el segundo, la didáctica digital inherente al proceso, representada en forma de polígono didáctico. Además, partimos de una construcción histórica para comprender la dinámica de las transformaciones educativas con el fin de corroborar con los paradigmas que han prevalecido durante los últimos siglos. Para el desarrollo de la propuesta se utilizarán elementos de la investigación científica realizada con docentes tanto en formación inicial como en servicio, así como referencias teóricas que comparen con las discusiones de la literatura actual.

Palabras clave: Enseñanza del conocimiento, Humanidad digital, Formación de profesores, Educación Matemática.

1. Introdução

Os processos educacionais são modelados conforme o contexto sociocultural vigente num determinado período histórico. Destes processos, destacam-se o conjunto de metodologias utilizadas pelo professor, os recursos didático-pedagógicos disponíveis para aquele e, sobretudo, os alunos envolvidos no trabalho pedagógico, sendo estes a finalidade última do processo educativo.

Não obstante, uma vez que assumimos como objeto do processo de educar a concepção de formação completa, entendida sob a égide da perspectiva marxista, devemos considerar como elementos iniciais da prática aqueles relacionados ao físico, intelectual e cultural. Assim, tais elementos, quando unidos, concretizam a premissa de uma formação completa e, principalmente, humana.

Ademais, é no conjunto de práticas pedagógicas que devemos atentar, se objetivamos construir um panorama de como os saberes ou componentes curriculares perpassam o aluno, a fim de se estabelecer uma aprendizagem efetiva. Neste caso, de acordo com Astolfi e Develay (2012) consideram-se outros fatores, também, somados ao primeiro aspecto citado. Tais fatores são de natureza didática, psicológica, operacional e epistemológica.

O primeiro caracteriza-se pelo conjunto de procedimentos específicos, utilizado para uma disciplina ou conteúdo particular. Desta forma, falamos em didática quando estabelecemos, por exemplo, o que iremos ensinar e quais os conteúdos para tal, corroborando com as perspectivas de Zabala (1998), Haydt (2011) e Meirieu (2002). O segundo, por sua vez, traz uma importante dimensão a ser considerada, tornando o ato de ensinar como uma práxis efetiva: segundo Vásquez (1968), todo professor que intenciona sua ação e percebe o aluno enquanto sujeito, terá compreendido sobremaneira o processo de ensino.

Sobre o terceiro fator, operacional, nele se enquadram todas as estruturas e recursos dos quais o professor dispõe para executar seu trabalho pedagógico. Este elemento, sem dúvida, contribui de modo significativo para o ensino, uma vez que com a disponibilidade de bons recursos um determinado conteúdo – ou um conjunto deles – poderá chegar ao aluno de forma cada vez mais clara e concretizada.

Finalmente, o quarto e último elemento é o que provê o processo formativo de sua essência primeira: o conhecimento utilizado e produzido a partir da prática. Quando um professor se dispõe a ensinar, há no trabalho pedagógico o emprego da reflexividade (MEIRIEU, 1997). Deste modo, toda aula ministrada, todo momento de passagem do conhecimento do/pelo professor ao aluno produz outros conhecimentos. Isso significa dizer que todo processo de ensino gera conhecimentos reinterpretados e, portanto, efetiva a aprendizagem daqueles em específico.

Nota-se, a partir dos quatro elementos citados, que a prática pedagógica requer uma técnica, associada à sua execução. A esta associação chamamos, no campo do ensino, de metodologia (ASTOLFI & DEVELAY, 2012). Para cada conteúdo a ser ensinado, cada conjunto de saberes que serão construídos, há uma metodologia específica. Neste sentido, podemos dizer que uma metodologia ficará definida quando as dimensões didática, operacional, psicológica e epistemológica estiverem, juntas, inseridas num contexto intencional em um tempo e espaço específicos.

Contudo, o tempo e o espaço supramencionados, componentes inerentes à prática, mudam e seguem o contexto social no qual aquela se dá. Assim, caberá ao professor mobilizar determinados saberes a fim de exercer seu papel reflexivo e de agente responsável pelo processo de ensino. Pois bem, se o contexto social define, em certa medida, a prática docente, como poderíamos entender a dinâmica do processo se o mundo se transforma a cada instante? De que modo um professor formado em um momento histórico diverso, onde não havia internet e computador, ensinará a uma sociedade completamente digital? Quais são os saberes que os docentes, neste contexto digital, deverão mobilizar para realizar sua prática pedagógica?

Com o escopo de refletirmos acerca destas questões e de um novo contexto de mundo, urgente e emergente, que se sobrepõe à prática pedagógica na contemporaneidade sob a forma digital, apresentamos neste artigo aspectos que sugerem um novo saber, necessário para o professor, nesta nova humanidade. Para isso, utilizar-nos-emos de elementos oriundos de pesquisas científicas, realizadas tanto com professores de formação inicial como em serviço, além de referenciais teóricos que cotejam com a literatura atual.

2. Enquadramento teórico

As transformações socioculturais pelas quais temos passado nos últimos vinte anos caracterizam, sobremaneira, um novo modo de ser e estar no mundo. Isso se deve, particularmente, aos eventos econômicos e sociais ocorridos nos dois últimos séculos. Com efeito, o século XIX traz como protagonista a técnica e sua pesada influência sobre a produção, fato este devido, essencialmente, ao desenvolvimento da ciência termodinâmica e demais áreas relacionadas à engenharia e ao domínio de novas fontes energéticas.

Ademais, ainda neste mesmo século, o surgimento das máquinas térmicas e elétricas, a expansão de redes de distribuição e geração de energia, bem como o alargamento da geração e acumulação de capital, juntos, deram impulso àquela que a literatura atualmente nomeia por segunda revolução industrial.

Assim, o século XIX define, por meio da produção em massa e da evolução constante nos meios técnicos e tecnológicos, um novo modo de divisão do trabalho e da organização social, processo esse, todavia, iniciado com a introdução da máquina a vapor e o carvão mineral como formas de energia, ainda no século XVIII.

No que diz respeito à divisão do trabalho, como discutida e apresentada inicialmente por Marx & Engels (2002), esta se caracterizou pela sua redefinição, dividindo as famílias em camadas, as quais se submeteram a uma relação de poder verticalizada, para sua sobrevivência. Desta forma, o pequeno grupo detentor do controle tecnológico voltado para a produção reuniu-se, como numa casta industrial, impondo os parâmetros iniciais que viriam a ser determinantes, no estabelecimento de uma nova ordem social.

Este pequeno grupo industrial assumiu o papel socioeconômico de definir e determinar o conjunto de saberes necessários para o mundo que produz e consome, como o fez Napoleão I, em 1806, ao estabelecer o modelo francês universitário, totalmente direcionado para a técnica e a engenharia, além de cogitar sobre um possível império francês baseado na racionalidade e poder ideológico.

Ademais, seguindo na perspectiva de que o capital orienta e determina o saber necessário, a ser incorporado, para o período histórico em questão (MACHADO, 2017), notam-se dois aspectos de relevância para esta discussão, sendo um de natureza epistemológica e outro de natureza ontológica.

O primeiro caracteriza-se pelo conjunto de conhecimentos que seriam gerados e transmitidos pela cultura, naquele momento de transformação, a partir das técnicas geradas com o novo sistema de produção. Pois, na medida em que as produções de bens de consumo desenvolveram-se, novos conhecimentos inerentes a este processo foram surgindo. Tal fato criou uma corrente epistemológica totalmente direcionada à técnica, a qual encontramos, atualmente, em discursos pedagógicos materializados nos currículos. Quando as instituições escolares são questionadas quanto à utilidade de um determinado conteúdo a ser ensinado, ficam evidentes as manifestações de uma forma de saber para produzir, herdada do século XIX.

Já o segundo, por sua vez, reconhece nesta problemática resultante dos saberes necessários à produção um modo de ser e estar socialmente. Inicialmente, pois se a nova organização social determinava a produção em grandes quantidades, a finalidade para tal direcionava-se, sobretudo, ao consumo. Para isso, de certo modo, havia a necessidade de maior distribuição das riquezas.

Assim, para que a produção, aumentando cada vez mais, tivesse saída, seria necessário maior poder aquisitivo daqueles que ali estavam ou, conforme a história nos informa, de novos mercados consumidores e detentores de recursos para extração. Aqui, vê-se uma política neocolonial a dominar o pensamento e, consequentemente, a concepção de estar no mundo, ou seja, é aquele que domina e possui os recursos para tal, e está aquele que é dominado e sujeito à nova ordem.

Como a educação é o recurso por meio do qual os saberes e técnicas inerentes a uma sociedade são transmitidos de geração a geração, a ordem econômico-social estabelecida pelos grupos industriais e imperialistas do século XIX teve papel preponderante na definição do que seria ensinado, bem como dos seus métodos. Partindo, pois, desta perspectiva, notamos um caráter colonizador estabelecido e incorporado na instrução social.

Outrossim, estabelece-se nos currículos dos países com maior potencial industrial, dando destaque para França, Inglaterra e Alemanha, disciplinas específicas direcionadas à técnica e à engenharia, isto é, assume-se o processo instrucional como vetor transmissor e incorporador das tecnologias que a humanidade industrial passara a desenvolver continuamente, e cada vez mais rápido.

Isso não significa, todavia, que anteriormente ao século XIX não havia um direcionamento e interesse no processo educacional. Ao contrário, conforme aponta o então integrante da assembleia francesa, Condorcet, em uma de suas memórias educacionais da recém-implantada república, a instrução pública tem o dever de assegurar aos cidadãos a igualdade de direitos, bem como toda profissão deve ser útil àqueles que a exercem, assim como é útil àqueles que a empregam (CONDORCET, 2008)[2].

Deste modo, Condorcet exprime um pensamento já industrializado, quando cita o termo útil, pois naquele período de mudança política a França passava por altos índices de analfabetismo e pobreza, necessitando de reformas consideráveis no que se referia ao bem coletivo, ao passo que a Inglaterra apresentava acúmulo de riqueza e início de um período neocolonial[3].

Neste sentido, o século XIX pode ser considerado, sob os aspectos apresentados, como aquele em que houve uma integração direta do processo educacional com a evolução tecnológica voltada para a industrialização, quando assumimos a tradição ocidental como referência.

Assim, podemos utilizar a evolução da indústria e seus desdobramentos na economia como linha de análise para acompanharmos o desenvolvimento educacional e suas ulteriores transformações, conforme aponta Harkins (2008).

Segundo este autor, a indústria chamada de 1.0 designa o conjunto de aparatos e técnicas industriais remanescentes do modo de produção artesanal. Basicamente, as formas como a produção se realizava até meados do século XVIII, nas pequenas oficinas, eram artesanais. A quantidade era relativamente menor, e o público consumidor era majoritariamente local.

Neste período, ademais, o processo educacional nos países europeus ficava restrito e limitado, sendo definido, predominantemente, pela igreja católica. Desta forma, seguindo a nomenclatura exposta por Harkins (2008) e corroborando com dados históricos de Manacorda (1992), observa-se o conjunto de práticas específicas definidas como educação 1.0.

Com a evolução de um novo ferramentário e a descoberta de leis físicas que orientaram a construção de máquinas capazes de otimizar a produção em larga escala, a indústria passou a se desenvolver de um modo exponencial, o que significou um acréscimo na produção e a mudança da organização social. Assim, com o intuito de aumentar cada vez mais a quantidade de produtos manufaturados, homens, mulheres e, até mesmo crianças, foram submetidos a longas jornadas laborais.

Contudo, a indústria deixou de ser 1.0 e passou a ser 2.0, isto é, uma indústria voltada para a produção em larga escala, cada vez maior e com recursos tecnológicos em desenvolvimento constante. Aliado a isso, foi necessária uma remodelação do processo educacional, direcionando-o para um saber útil e aplicável na nova prerrogativa de produção. Assim, temos a educação 2.0. Segundo Harkins (2008) e Mometti (2020b), este período foi o de maior duração, na linha temporal da evolução da indústria e, consequentemente, da educação.

De fato, no início desse longo processo foram utilizadas as máquinas que utilizavam o carvão mineral como forma de energia. Posteriormente ao descobrimento da eletricidade e sua utilização para realização de trabalho em motores, a produção foi otimizada e a iluminação elétrica substituiu os antigos lampadários a vela. Aliado a isso, a própria produção de conhecimento tivera sua evolução, observada em áreas como a física, química, bioquímica e comunicação, as quais apresentaram ao mundo, grosso modo, uma nova ontologia. Desta forma, a educação foi orientada para a especialização cada vez mais intensa e a utilização de mídias interativas surgidas no século XX, tais como o videocassete, fitas com gravações musicais e livros impressos a cores e com figuras tridimensionais.

Outrossim, ainda no século XX surgiu uma das tecnologias que mudaria não apenas o modo de estar no mundo, mas também a forma de existir nele. Tal tecnologia caracteriza-se pela manipulação de dados eletrônicos e sua posterior conversão em informação: o computador. A informática transformou as comunicações e mecanizou todos os processos até então realizados de forma manual. A este ponto, basicamente na segunda metade do século XX, víamos nascer um outro mundo, paralelo a este, o mundo digital. Todas as transações bancárias, processos de produção, criação de conteúdo entre diversos outros campos tiveram a incorporação da informática em sua rotina.

Claramente, isso não seria diferente no campo da educação. Segundo Mometti (2018), a escola caracteriza-se, em boa medida, como um espelho fidedigno da realidade que estamos vivenciando. Deste modo, se o mundo a partir do século XX se digitalizou, a escola e seus processos inerentes também deveriam fazê-lo.

Assim, de acordo com Harkins (2008) a indústria, a partir do século XX, passa a ser 3.0 e, de modo semelhante, a educação torna-se 3.0. Nesta perspectiva, todavia, a caracterização principal deste novo formato educacional é a inserção das tecnologias digitais - inicialmente com o computador e, posteriormente, com a internet - nas práticas de ensino. A Tabela 1, a seguir, dá-nos um comparativo dos períodos educacionais em função dos avanços tecnológicos.

Tabela 1
Comparativo das caracterizações tecnológicas da evolução industrial
Referência ao período industrial Período histórico Evolução do processo educacional Caracterizações tecnológicas
Indústria 1.0 Séculos: XIII ao XVII Educação 1.0 Produção artesanal e familiar; ferramentas de pequeno porte; fonte de energia principal: mecânica, animal, e do corpo humano.
Indústria 2.0 Séculos: XVII ao XIX Educação 2.0 Produção mecanizada e concentrada em fábricas; máquinas movidas a vapor e energia elétrica; produção em larga escala.
Indústria 3.0 Séculos: XIX ao XX Educação 3.0 Produção informatizada e concentrada; máquinas menores e com consumo de energia otimizado; produção em larga escala personalizada.
Indústria 4.0 Século XX até os dias atuais Educação 4.0 Produção informatizada e robotizada; máquinas manipuladas e controladas por outras máquinas; trabalho fragmentado e assíncrono; produção em larga escala e flexível; internet como meio principal de comunicação.
o autor.

Outro elemento importante para a indústria 3.0 foi a inserção da internet nos três setores econômicos. A internet surgiu na metade do século XX como um experimento militar de comunicação (LEINER et al, 1997). Por meio da tentativa de se comunicar utilizando códigos digitais entre dois dispositivos em dois pontos diferentes, desenvolve-se a rede de computadores. A palavra internet é formada pelos afixos inter (diferentes pontos) e net (rede), isto é, rede de pontos conectados.

Deste modo, aliando a evolução da linguagem computacional com equipamentos de melhor qualidade e menor tamanho, surgiram computadores com velocidade de processamento, cada vez melhores. Esse terreno apresentou fertilidade considerável para que a comunicação digital entre estes diversos dispositivos também iniciasse uma carreira solo.

A partir do desenvolvimento de equipamentos com melhores performances na transmissão e decodificação de sinais digitais, a internet ganha vida própria e assume o protagonismo do então século XXI. Se no século XX a tecnologia informática era a nova onda, o século XXI ganha espaço e presença assumindo uma nova forma de viver, o modo digital. Desta maneira, ainda partindo da concepção de Harkins (2008), vemos no século XXI a Educação 4.0.

Conforme apresenta a Tabela 1, esta nova forma de educar considera a rede como ponto de partida e o compartilhamento como fonte de informação. Já a Tabela 2, abaixo, dá-nos um comparativo da educação nos quatro períodos considerados, quando assumimos os conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, essenciais à prática pedagógica como referência (ZABALA, 1998).

Tabela 2
Comparativo dos conteúdos didáticos nos períodos educacionais
Período educacional referenciado Conteúdos conceituais Conteúdos procedimentais Conteúdos atitudinais (desdobramentos)
Educação 1.0 Registrados em livros e formas impressas, controlados pela Igreja Católica. Transmitidos por clérigos por meio de livros e histórias geracionais. Essencialmente limitados à moral e ética vigentes no período. Conhecimento limitado ao clero e ligado à Igreja Católica. Igreja como núcleo educador principal.
Educação 2.0 Livros e outras formas impressas. Transmitidos por professores - instrutores e por meio de livros e outras formas impressas. Mudança de paradigma educacional e currículo voltado para a utilidade do saber – produção. Inserção dos primeiros métodos de ensino sistematizados, como consequência do movimento positivista francês. Surgimento das primeiras universidades técnicas.
Educação 3.0 Livros, mídia impressa, rádio e TV. Transmitidos por professores e por meio de livros, mídia impressa, rádio e TV. Personalização do ensino e inserção da informática. Desenvolvimento da autonomia e possibilidades de se aprender fora da escola, com recursos tecnológicos. Rádio e TV assumem protagonismo no cotidiano social e isso se relaciona com os processos educativos.
Educação 4.0 Armazenado na nuvem digital e acessado conforme necessidade. Livros digitais, redes sociais e mídias diversas. Disponibilizado por metodologias que incluem o aluno no processo (ativa); conhecimento na nuvem; digitalizado; procedimentos personalizados. Mudança no paradigma educacional. Aluno como produtor e responsável pelo seu processo de aprendizagem. Conhecimento disponibilizado pela rede virtual e mídias acessíveis para o processo de aprendizagem. Palavra-chave: autonomia.
o autor.

Assim percebe-se, na Tabela 2, como o conjunto de conteúdos necessários à prática pedagógica opera nos quatro períodos que caracterizamos na educação. Além disso, depreende-se da tabela, no que se refere ao conteúdo atitudinal, que na educação 1.0 o mesmo operava por meio da interação unívoca entre aluno e conhecimento (materializado na forma de livro).

Já na educação 4.0 este conteúdo manifesta-se na forma de likes e curtidas nas diversas mídias digitais (redes sociais, sites de vídeos, podcasts etc). Isso significa que, segundo Zabala (1998), os conteúdos atitudinais expressam as bases necessárias para a construção de uma ética social (coletiva); as redes sociais, na educação 4.0, influenciam, e muito, o novo modus vivendis que assumimos no século XXI.

Não obstante, se o processo de socialização dá-se por meio da interação do indivíduo com seu contexto e as regras que ali permeiam (GIDDENS, 2013; BELLONI, 2007) devemos atentar para um novo e emergente tipo de sociedade, esta que constrói e reconstrói sua cultura por meio da vida digital e, além disso, transmite suas técnicas, crenças e padrões por meio de códigos específicos e cada vez mais sintetizados. A esta nova sociedade designaremos como uma humanidade digital.

Consoante ao conceito supracitado, entendemos por humanidade o conjunto de indivíduos caracterizados como Homo sapiens, capazes de produzir linguagem, transformar a técnica observada do meio natural em cultura e, dominar espaços naturais modificando-os em geográficos, definindo um estado de ser que os diferencia de uma condição de animalidade (INGOLD, 1994). Uma vez que estabelecemos esta nova forma de humanidade, o conjunto de saberes necessários à sua permanência e prosseguimento no mundo necessita ser repensado.

Ademais, ser-nos-á importante redesenhar as práticas docentes, bem como os meios através dos quais tais práticas dar-se-ão. Se no século XX tínhamos práticas docentes voltadas para a transmissão unívoca do conhecimento, no XXI - século da humanidade digital - temos que direcioná-las para uma multiplicidade de saberes e suas inter-relações, isto é, teremos uma prática pedagógica multidirecionada.

3. A práxis pedagógica na humanidade digital

A sala de aula é entendida, na literatura atual, como um espaço no qual os conhecimentos são mobilizados e direcionados para um fim específico (FRANCO, 2015). Além disso, neste espaço diferentes culturas se produzem e se reproduzem, sobrepondo-se umas às outras num emaranhado social (SEWELL Jr., 2005; TOBIN & RITCHE, 2012).

Neste sentido, dizer que na sala de aula há produção de culturas é o mesmo que considerar cada sujeito que ali está como detentor de um conjunto de saberes, os quais não são - e não devem ser, sobremaneira - eliminados pelos saberes sistematizados e previamente escolhidos pelo professor (FRANCO, 2015).

Assim, como uma primeira aproximação, podemos entender a prática pedagógica docente como a mobilização de conhecimentos sistematizados, organizados metodologicamente e com a finalidade de garantir o processo de aprendizagem nos sujeitos envolvidos. Diante desta proposição, pode-se assumir como mobilização a escolha de conteúdos referentes a uma grade curricular específica. Já no que diz respeito à organização metodológica, caberá ao docente exercer sua autonomia para a definição de quais são os melhores processos para desenvolver os conteúdos desejados.

Desta forma, a prática pedagógica evidencia-se mediante o papel do docente frente aos conteúdos necessários. Como supramencionado, entendemos a sala de aula como um espaço - lugar - destinado para que as culturas inerentes a cada sujeito daquele grupo social entrem em contato umas com as outras. Tal contato caracteriza-se por aquilo que chamamos de interação social. Esta interação, por sua vez, é um dos elementos essenciais no que tange ao amadurecimento, tanto emocional quanto psicológico, do sujeito. Isso, certa medida, é parte integrante do processo de ensino e fundamenta a aprendizagem do aluno.

De acordo com Mometti et al (2017) além da importante troca promovida pelas sobreposições culturais, existentes na sala de aula, destaca-se ainda o processo de espelhamento do contexto social no qual aqueles alunos estão inseridos. Isso significa que as manifestações destes sujeitos, materializadas na forma escrita - textos, redações, trabalhos - ou oral, por meio de comentários e expressões, aludem a um conjunto de crenças e padrões existentes num determinado período histórico.

Deste modo, o uso intensivo de tecnologias digitais e a inserção em uma vida paralela digital refletir-se-á em sua aprendizagem e, consequentemente, na prática pedagógica docente. Assim, ainda segundo Mometti (2018), caberá ao professor a escolha acertada e necessária da metodologia por meio da qual realizará seu trabalho de ensino.

Todavia, assumir que uma sala de aula espelha a sociedade não é o mesmo que argumentar acerca de uma reprodução social, isto é, o fato de existirem características semelhantes reportadas do meio exterior para o interior não significa que na escola ocorra uma reprodução total do que a sociedade vive e produz.

Tal afirmação fica evidenciada quando assumimos, por exemplo, a escola como um espaço no qual a educação se dá por meio formalizado e sistemático. Pois, assumindo a perspectiva de Giddens (2013) e Sewell Jr. (2005) de que a sociedade é um conjunto de esquemas de ação e recursos (humanos e não humanos), os quais se relacionam com os indivíduos por meio da ação (agency), haveria uma forte necessidade de modificação destes esquemas para que aquele espaço formal reproduzisse totalmente as ações cotidianas.

Neste sentido, para compreendermos a última asserção assumimos como esquemas de ação todo conjunto de regras, métodos, meios pelos quais os indivíduos exercem sua influência (ação - agency) sobre a estrutura. Tomando a sala de aula como nosso contexto - chave de análise, seriam esquemas de ação os procedimentos utilizados pelo professor, o modo como os alunos fazem suas observações, comportam-se perante os outros colegas e estudam determinados conteúdos. Desta forma podemos entender, sob a visão de Sewell Jr. (2005), que a prática pedagógica caracteriza-se, em certa medida, como um esquema de ação que atua na estrutura social escola[4].

Outrossim, conforme citado anteriormente, a sala de aula foi tomada como um espaço no qual convergem diferentes culturas, as quais nunca se anulam, mas sobrepõe-se umas às outras de modo a reproduzir padrões e crenças de um grupo específico. Esta observação não se afasta da ideia de assumirmos a escola como uma estrutura. Ao contrário, a cultura é aqui entendida como uma estrutura que se produz e reproduz, numa díade necessária à sua própria existência[5].

Ademais, partindo da perspectiva de (SEWELL Jr, 2005; GIDDENS, 2013; GEERTZ, 1989) assumimos como uma segunda aproximação e entendimento de prática pedagógica docente ao conjunto de esquemas de ação necessários para o processo de ensino. Assim, a estrutura (escola) deve ser definida como composta, simultaneamente, de esquemas - os quais são virtuais - e recursos, caracterizados como reais (SEWELL Jr, 2005).

A palavra virtual, no contexto supracitado, refere-se às formas empregadas para exercer alguma influência sobre a estrutura, e materializadas por meio da ação (agency). No entanto, há que se considerar os recursos como reais, uma vez que são formados pelos docentes, gestores, colaboradores escolares (recursos humanos) como, também, por livros, computadores e materiais de laboratório (recursos não humanos).

Orientando esta discussão para a proposição inicial deste artigo, na nova humanidade digital as estruturas predominantes sofrem a ação de um agency não apenas por meio de quebra de regras ou normas, mas também pelas influências causadas pelo mundo digitalizado. Isso equivale a dizer, para ilustrar, que um conjunto de notícias falsas (fakenews) pode influenciar, substancialmente, a orientação política de uma sociedade.

Nesta perspectiva e, conforme discutido anteriormente, a nova humanidade digital necessita de uma educação guiada para lidar com estas interferências e, sobretudo, auxiliar no processo de tomada de decisão por parte dos constituintes sociais.

Desta forma, na Educação 3.0 encontramos, por exemplo, um entendimento didático para o processo de ensino-aprendizagem interpretado por um triângulo didático, segundo a perspectiva de Brousseau (2008), o qual era definido pela ligação de três vértices equidistantes caracterizados pelo saber, o aluno e o professor.

Nesta linha francesa de interpretação, notamos uma distância igualitária e necessária para o processo de ensino, entre o saber representado pelo conjunto de conhecimentos necessários para transmissão ao aluno, o professor como mediador e agente transformador importante na aprendizagem e, finalmente, o próprio aluno, objetivo do processo.

Triângulo didático interpretado de Brousseau (2008)
Figura 1
Triângulo didático interpretado de Brousseau (2008)
o autor.

Todavia, uma vez que assumimos a nova humanidade digital, totalmente inserida na Educação 4.0, precisamos readaptar a concepção didática proposta por Brousseau (2008). Assim, propomos um polígono didático, o qual se constitui por cinco vértices, equidistantes, representando o saber digital (disponível na nuvem digital), o aluno (foco do processo), as tecnologias digitais (necessárias e indispensáveis para esta nova humanidade), a pesquisa (considerando a total disponibilidade do saber e a tendência para a autonomia e individualização dos estudos) e, finalmente, o professor (necessário e agente transformador do processo).

 Polígono didático na Educação 4.0
Figura 2
Polígono didático na Educação 4.0
o autor.

O polígono didático propõe uma nova concepção pedagógica para interpretarmos a prática docente nesta humanidade digital. Seus cinco vértices devem sempre estar interligados; juntos, eles sistematizam a aprendizagem dos sujeitos na Educação 4.0.

Assim, uma vez interpretada a nova sistemática de aprendizagem que este novo mundo digital nos oferece, cabe-nos num segundo momento investigarmos quais serão as metodologias que se adequarão ao aluno dito nativo digital (MOMETTI, 2020b).

Isso significa, todavia, que o novo processo didático requerer-nos-á, de um ponto de vista epistemológico, um novo conceito de ensino, um novo conceito de aprendizagem e uma nova forma de promover aquele, por vias metodológicas essencialmente digitais.

4. O saber mediatizado necessário à Educação 4.0.

Como citado anteriormente, neste artigo, a prática pedagógica foi interpretada como sendo o conjunto de esquemas de ação necessário ao desenvolvimento do processo de ensino.

Deste modo, podemos elencar como esquemas de ação, para esta prática, as metodologias escolhidas pelo docente para trabalhar um conteúdo específico, a forma como escreve no quadro, o modo como apresenta um mapa, uma figura ou um gráfico, as expressões corporais ao longo das aulas e, finalmente, as emoções produzidas durante seu trabalho e manifestadas por meio da fala e face (TOBIN & RITCHE, 2012; COLLINS, 2005).

Para todos estes exemplos de esquemas de ação há a produção de uma determinada cultura docente, ou seja, um conjunto de práticas acumuladas ao longo de um período e que lhe servirão como base de referência para a continuidade de seu trabalho pedagógico e para seu aprimoramento profissional. Além disso, podemos atribuir àquelas um aspecto epistemológico específico que caracteriza a cristalização, por meio da experiência, das práticas outrora desenvolvidas.

Assim, este aspecto diz respeito ao conjunto de saberes necessários para que o professor implemente e mantenha um ciclo na sua docência. Segundo Tardif (2012), estes saberes, inerentes ao processo de docência, possuem uma natureza plural e dinâmica, além de se constituírem e reconstituírem por meio de categorias a priori, as quais são oriundas do seu processo de formação inicial, da sua prática profissional, dos conhecimentos obtidos por meio dos estudos e, finalmente, da sua experiência escolar vivenciada.

Deste modo, se assumirmos uma linha temporal como recurso de análise da prática docente, notamos que com frequência o professor, ainda na universidade, carrega modelos de docência provenientes do seu processo formativo. Tal fato sugere que, embora sua formação inicial universitária o abasteça com uma bagagem teórico-metodológica adequada para ser professor, foi no seu momento de estar aluno que internalizou a maior parte das práticas que considera como inerentes ao ofício. Além disso, tais práticas internalizadas influenciarão substancialmente seu trabalho enquanto professor, principalmente nos anos iniciais da sua atuação.

A propósito do presente argumento, tal influência foi observada durante a realização de uma pesquisa com alunos do curso de licenciatura em Física da Universidade de São Paulo (MOMETTI, 2018). Neste estudo, um grupo de alunos de diferentes ciclos do curso de licenciatura em Física foram convidados a implementarem, em um dos momentos de seu estágio obrigatório, uma metodologia de ensino baseada numa perspectiva interdisciplinar. Durante a fase de planejamento destas atividades interdisciplinares, notaram-se nestes alunos de licenciatura, por meio de suas falas e entrevistas posteriores à implementação, elementos que remetiam ao seu período enquanto aluno.

Nesta perspectiva, embora lhes tenha sido proposta a elaboração de uma metodologia diversa daquela que observamos atualmente na sala de aula, no que diz respeito ao ensino da Física, a forma como a queriam aplicar para alunos do ensino médio ainda continha a organização típica de um professor de Física entendido como tradicional (MOMETTI et al, 2017; MOMETTI, 2018).

Outro exemplo acerca da reprodução deste saber docente incorporado pôde ser observado em um segundo estudo, realizado com professores polivalentes durante um curso de formação continuada (MOMETTI, 2019a; MOMETTI, 2020a). Para esta investigação, foram convidados vinte e dois professores polivalentes do ensino fundamental, anos iniciais, para participarem de um curso sobre metodologias do ensino de matemática. Ao longo de uma das aulas, especificamente sobre a metodologia de ensino para Sistema de Numeração Decimal (SND), quatro dos professores manifestaram comentários referentes ao seu período como aluno, aludindo que deveriam continuar ensinando de tal modo, pois assim aprenderam e assim deveriam exercer sua prática.

Estes dois exemplos, obtidos por meio de pesquisa empírica, contribuem para se refletir acerca da forte influência da cultura construída pela e sobre a docência ao longo do período vivenciado pelo professor, tanto como aluno quanto no seu próprio ofício. Podemos chamar, em certa medida, a este saber, de cultural.

Ademais, além dos saberes obtidos a partir da experiência e descritos anteriormente, Tardif (2012) apresenta-nos os saberes obtidos por meio dos estudos da formação inicial e continuada ou, dito de outra forma, os saberes relativos à formação. Neste aspecto, toma destaque o currículo da formação docente. A grade de disciplinas que orienta e sistematiza o currículo da formação docente assume importância significativa na prática que será exercida pelo professor ao longo de seu trabalho.

Outrossim, os componentes curriculares estudados ao longo das formações inicial e continuada atuam como âncoras de segurança na sistematização e reafirmação da profissionalidade docente. É por este motivo que, durante as formações continuada, as necessidades de método e técnica aparecem, indissoluvelmente, manifestadas nas perguntas "é assim que devo fazer?", "eu fiz deste modo para trabalhar este conteúdo, está correto?" ou, ainda, "eu posso trocar este por aquele modo sem prejudicar meu aluno?"[6].

Todavia, há que se destacar que todas as formas de saber supramencionadas trouxeram-nos, por vias da Educação 4.0, um sinal de alerta no que tange aos métodos e práticas para a efetivação da aprendizagem. Isso significa que, conforme já discutido, a humanidade digital apresenta outras necessidades, outros parâmetros e formas de interpretar e reinterpretar a realidade vivenciada.

A partir da Educação 3.0, conforme apontado pela Tabela 2 deste artigo, já se observa no processo de ensino a inserção de ferramentas tecnológicas, tais como o uso dos computadores e internet. O que faz a Educação 4.0 inaugurar um novo momento pedagógico, e histórico, é o fato de que neste contexto o aluno torna-se sua própria fonte de estudos, isto é, o conhecimento será construído daquele para uma Rede, de forma colaborativa e integrada.

Assim, podemos perceber a necessidade de uma didática multidimensional, tal como proposta pela Figura 2, acima. Para além desta didática, caberá ao professor da humanidade digital dispor não somente dos saberes outrora mencionados, como também de um novo tipo de saber, aqui definido como mediatizado.

Neste sentido, entendemos por saber mediatizado[7] o conjunto de conhecimentos necessários para o desenvolvimento do trabalho pedagógico num contexto digital. Quando um professor prepara seus slides, por exemplo, está colocando em prática seu saber mediatizado. Do mesmo modo, quando responde a um fórum, cria um formulário, desenvolve um texto virtual ou, ainda, quando envia um vídeo para a Rede com os principais tópicos a serem abordados por um dado conteúdo/disciplina, manifesta a mediatização necessária àquele contexto.

Ademais, a despeito dos outros saberes, o mediatizado surge da necessidade de uma ressignificação metodológica inerente à humanidade digital. Tal elemento vai ao encontro da discussão acerca das técnicas de ensino emergentes, para um contexto de transição, onde de um lado encontramos um nativo digital, totalmente naturalizado com os dispositivos e ferramentas virtuais e, de outro, um migrante digital, coexistente no mesmo espaço físico, porém habitante de um mundo ainda analógico e diverso.

A díade nativo digital/migrante digital[8] traz consigo o alerta para que repensemos a prática pedagógica, nesta nova humanidade digital. Técnicas como as utilizadas até então deverão ser repensadas e reformuladas, transformando-as para constituírem um conjunto de práticas que coloquem o aluno na centralidade do processo, ao mesmo tempo em que dele se parte, principalmente quando consideramos a aprendizagem colaborativa.

De fato, conforme citado anteriormente, a prática pedagógica da humanidade digital poderá ser caracterizada por um conjunto de saberes que não levem em conta, apenas, a experiência vivenciada, mas, complementarmente, que se considere, sob um aspecto temporal e geracional, a migração do docente para um novo mundo, repleto de avatares, vivências digitalizadas e emoções manifestadas por meio de símbolos diversos.

5. Considerações finais

Repensarmos a prática docente sob a perspectiva de uma nova humanidade faz-se, pois, necessário e emergente. Na medida em que o mundo muda, há transformações consideráveis no que diz respeito não apenas à economia, mas também aos aspectos educacionais, conforme foram apontados pelas Tabelas 1 e 2. Além disso, tais transformações educacionais seguiram as diretrizes de natureza econômica, pois são estas que regulam e estruturam a sociedade.

Uma vez entendida a prática docente como um conjunto de esquemas de ação e recursos operando por meio de uma intencionalidade, parte-se para uma nova questão: se a humanidade digital ressignifica os valores e práticas culturais existentes na contemporaneidade, como ficarão os professores no que diz respeito à metodologia do ensinar? Quais recursos e/ou objetos devem ser disponibilizados para que o polígono didático supramencionado possa efetivar a aprendizagem? Quais saberes digitais são importantes e, sobretudo, relevantes na formação dos nativos digitais?

Deste modo, como discutido ao longo do texto, caberá ao atual docente nutrir-se de um novo saber, aqui conceituado por mediatizado. Por meio deste terá o conjunto de técnicas direcionadas para uma prática efetiva, considerando os aspectos didático, operacional, psicológico e epistemológico, os quais são inerentes a uma metodologia.

Como um dos desdobramentos desta humanidade que emerge do contexto digital, notamos uma reconceitualização daquilo que entendemos por formação inicial dos professores. Posto que o processo de mudança paradigmática seja perene, aos professores migrantes digitais restará nada mais que se formar e se imbuir deste conhecimento mediatizado, ao longo de sua profissionalidade. Já em relação àqueles que ainda se tornarão professores, devemos pensar numa estrutura curricular que incorpore mais componentes ligados ao uso das tecnologias e como estas operam as metodologias de ensino.

Assim, para além de forjar respostas para as questões expostas no início deste artigo, buscamos compreender que mudar a prática docente faz-se urgente e necessário. Todavia, esta mudança precisa considerar que há uma nova forma de ser e estar no mundo [ontológica], baseada num estigma digital e maquiado por relações inconstantes. Se para Jaeger (2018) a educação grega pós-homérica moldava-se ao sujeito para forjar uma formação integral naquele contexto dado, por outro lado a educação contemporânea é moldada pelo sujeito digital, que configura mundos e situações a depender do que constrói em sua rede.

Portanto, abre-se-nos uma questão adicional a que, nos próximos estudos, deveremos responder: que modelo de Paideia digital deveremos assumir?

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Notas

[2] Neste trecho Condorcet categoriza o trabalho sob duas formas, sendo a primeira aquela voltada para a utilidade individual, e a outra aquela destinada para a subsistência da sociedade. Neste sentido, Condorcet (2008, p.207) cita (...) que umas [as profissões] têm como objetivo satisfazer as necessidades, aumentar o bem-estar, multiplicar os prazeres dos homens isolados; elas servem tão-somente àqueles que querem tirar proveito de seus trabalhos. E, continua enfatizando que (...) há outras profissões cuja utilidade comum parece ser o primeiro objetivo. É à sociedade, de forma global, que aqueles que as adotam consagram seu tempo e seu trabalho.
[3] Cabe destacar que, embora a Inglaterra apresentasse, cada vez mais, um potencial industrial e aumento na produtividade, a nova classe dominante necessitava de mão de obra qualificada, além de funcionários que soubessem ler as instruções técnicas, por exemplo, das máquinas empregadas na produção. Neste ponto, percebemos um paradoxo no que tange ao processo educacional: na medida em que as fábricas propiciaram a expansão e um início de universalização educacional, devido aos novos princípios concernentes à instrução pública, aquelas impediam que as crianças participassem deste processo, uma vez que com a crescente demanda por produção, assumiram-se jovens, mulheres e crianças para longas jornadas de trabalho (MANACORDA, 1992).
[4] Uma vez que se assume que uma estrutura é o conjunto de esquemas de ação e recursos (SEWELL Jr, 2005; GIDDENS, 2013), a escola, no seu papel de instituição social, espaço onde grupos se organizam e se reorganizam com a finalidade de transmitir padrões, crenças e técnicas geradas ao longo de uma tradição, pode ser entendida como tal. Além disso, em uma estrutura podemos encontrar microestruturas, as quais manifestam padrões específicos de um subgrupo determinado.
[5] O teorema da dualidade da estrutura, de Giddens (1979), expressa-nos de modo significativo esta questão.
[6] As pesquisas apresentadas por Mometti et al (2017) e Mometti (2018; 2019a; 2020a) apontam resultados nesta direção.
[7] O saber digital, neste contexto, insere-se como um saber complementar àqueles citados por Tardif (2012). Assim, temos a presença da experiência, da bagagem teórica, da profissionalidade e, de modo adicional, a mediatização do professor.
[8] Neste artigo assumimos o termo migrante digital como aquele sujeito que habita um mesmo espaço físico que um nativo digital, porém vive em um mundo ainda analógico.

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