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Investigações Matemáticas sob a ótica da epistemologia de Lakatos: percepções a partir de uma meta-análise
Mathematical Investigations from the perspective of Lakatos' epistemology: perceptions of and from studies
Investigaciones matemáticas en la perspectiva de la epistemología de Lakatos: percepciones de y desde estudios
Revista de Educação Matemática, vol.. 18, e021051, 2021
Sociedade Brasileira de Educação Matemática

Artigos Científicos

Revista de Educação Matemática
Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil
ISSN: 2526-9062
ISSN-e: 1676-8868
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 18, e021051, 2021

Recepção: 22 Janeiro 2021

Aprovação: 04 Agosto 2021

Publicado: 28 Setembro 2021

Copyright Revista de Educação Matemática 2021.

Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: O estudo objetiva discutir as implicações de duas pesquisas acerca da epistemologia de Lakatos e da Investigação Matemática (IM). Para isso, apoia-se em Fiorentini e Lorenzato (2012) e utiliza a metodologia designada de meta-análise qualitativa com a finalidade de analisar e apresentar reflexões a respeito da utilização da epistemologia de Lakatos na pesquisa com IM. Os estudos analisados apontam que há pontos de convergência entre eles, dentre os quais destacamos o entendimento do que é a IM, a noção de avanço da Ciência e a forma de perceber o conhecimento como progressivo ou degenerativo. Ao final, destacamos alguns pontos dessas duas pesquisas que podem dar margem para novos estudos.

Palavras-chave: investigações matemáticas, Lakatos, meta-análise.

Abstract: The study aims to discuss the implications of research on Lakatos' epistemology and Mathematical Investigation (MI). For this, a meta-analysis bibliographic study was carried out in published scientific articles, with the purpose of analyzing and presenting reflections on the use of Lakatos' epistemology in research with MI. The analyzed studies point out that there are points of convergence between them, among which we highlight the understanding of what MI is, the notion of advancing Science and the way of perceiving knowledge as progressive or degenerative. At the end, some points of these two researches were highlighted that may give rise to new studies.

Keywords: mathematical investigations, Lakatos, meta-analysis.

Resumen: El estudio tiene como objetivo discutir las implicaciones de la investigación sobre la epistemología y la investigación matemática (IM) de Lakatos. Para ello, se realizó un estudio bibliográfico de metaanálisis en artículos científicos publicados, con el propósito de analizar y presentar reflexiones sobre el uso de la epistemología de Lakatos en la investigación con IM. Los estudios analizados señalan que existen puntos de convergencia entre ellos, entre los cuales hemos asinalado la comprensión de lo que es la IM, la noción de avance de la Ciencia y la forma de percibir el conocimiento como progresivo o degenerativo. Al final, se destacaron algunos puntos de estas dos investigaciones que pueden dar lugar a nuevos estudios.

Palabras clave: investigaciones matemáticas Lakatos, metanálisis.

1. Intenções iniciais

O filósofo Imre Lakatos (1922-1974), a partir de suas obras, tem inspirado filósofos e educadores a refletirem e proporem ações relativas ao Ensino. Tal influência também acontece no campo da Educação Matemática, e muitas dessas ações estão apoiadas em duas das suas principais obras: A Lógica do Descobrimento Matemático: Provas e Refutações (LAKATOS, 1978) e o artigo/capítulo O Falseamento e a Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica (LAKATOS, 1979), publicado no livro A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento (LAKATOS; MUSGRAVE, 1979). Nelas, são encontradas duas ideias principais, o falibilismo e o racionalismo na matemática.

Tais obras têm instigado pesquisadores a utilizarem as ideias lakatosianas em busca de melhor fundamentar estudos acerca de métodos de ensino de matemática, tais como Resolução de Problemas, História da Matemática, Etnomatemática ou IM, por exemplo (CARDOSO, 2018). Isso impulsionou um estudo que objetivava compreender como tais ideias são apresentadas e discutidas no contexto da IM. Assim, o texto deste artigo objetiva analisar e apresentar reflexões a respeito da utilização da epistemologia de Lakatos na pesquisa em IM.

Na busca de alcançar tal objetivo, realizamos uma pesquisa qualitativa. Trata-se de um estudo bibliográfico qualitativo do tipo meta-análise, concebido como uma “[...] revisão sistemática de outras pesquisas, visando realizar uma avaliação crítica das mesmas e/ou produzir novos resultados ou sínteses a partir do confronto desses estudos, transcendendo aqueles anteriormente obtidos” (FIORENTINI; LORENZATO, 2012, p. 103). Essa revisão sistemática é feita a partir de um número reduzido de pesquisas qualitativas.

Os estudos constituintes do corpus de análise deste trabalho foram obtidos a partir da seleção de artigos científicos divulgados em repositórios ou banco de dados virtuais de acesso livre, tais como: (i) Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); (ii) Portal SciELO (Scientific Electronic Library Online; (iii) Google acadêmico; e (iv) artigos publicados em revistas qualificadas da área. A busca foi realizada mediante a utilização de palavras-chave: “Lakatos” + “investigação matemática”, considerando as primeiras dez páginas de cada repositório, caso possuísse.

Após a leitura dos resumos, percebemos que somente dois estudos abordavam a epistemologia Lakatosiana e a IM, o de Wichnoski e Kluber (2015) e de Silva e Moura (2015), denominados neste estudo de E1 e E2, respectivamente. Para a apresentação e análise foram considerados os seguintes aspectos: (i) palavras-chave; (ii) problema de investigação/objetivo; (iii) referenciais teóricos; (iv) metodologia utilizada; e (v) resultados. Como resultado, a partir do confronto de ideias dos estudos e sua discussão à luz dos referenciais teóricos, foram emitidas reflexões que explicitam as implicações das pesquisas acerca da epistemologia de Lakatos e a IM, que podem contribuir para os trabalhos na área.

Para tanto, nas seções a seguir, trazemos considerações situando a IM dentro do campo da Educação Matemática. Na continuação, são tecidas considerações sobre duas das principais obras de Lakatos, anteriormente listadas. A partir desses elementos, na parte seguinte do estudo, trazemos as principais ideias dos dois estudos selecionados a fim de realizar a metanálise. Por fim, são apresentadas as considerações da combinação dos principais resultados desses estudos.

2. Investigação Matemática – perspectivas para a sala de aula

O que é investigar? O que é investigar em matemática? Os estudos acerca da temática são recentes no Brasil e, na concepção de João Pedro da Ponte, uma das referências em IM, investigar consiste em procurar saber o que não se sabe, o que não se tem respostas ainda, mas que estamos dispostos a estudar (PONTE, 2003). O autor acredita que é possível adaptar o processo de investigação do matemático para ensinar matemática na sala de aula, tal como Lakatos (1978), quando descreve metaforicamente episódios de aulas.

Para Ponte, Brocardo e Oliveira (2016), investigar em matemática consiste em um trabalho pautado no estilo ‘conjectura-teste-demonstração’, em que o estudante vai extraindo informações/conjecturas da tarefa de investigação, realiza testes de validação sobre estas informações/conjecturas, refina-as e, por fim, demonstra e comprova os resultados obtidos. Essa estrutura é baseada na reflexão epistemológica a respeito da construção do conhecimento matemático e a experiência matemática, apresentando relação com as ideias de Lakatos, que serão explicitadas mais adiante.

Em sua obra, os autores trazem um exemplo de Henri Poincaré (1854-1912), que desenvolve uma investigação em três fases: (i) compilação de informações e experimentação; (ii) iluminação súbita; (iii) sistematização e verificação dos resultados. Além disso, citam George Polya (1887-1985), utilizando um exemplo de registro de desenvolvimentos do conhecimento matemático.

A realização de uma IM, segundo Ponte (2003) e Ponte, Brocardo e Oliveira (2016), envolve quatro momentos principais:

1) Reconhecimento da situação-problema, sua exploração preliminar e a formulação de questões investigativas;

2) Formulação de conjecturas a partir da observação dos dados ou informações, isto é, organização de dados e construção de conjecturas;

3) Realização de testes (provas) e refinamento e sistematização das conjecturas;

4) Argumentação, demonstração e avaliação do trabalho realizado, ou seja, construção de justificativas, argumentações ou demonstrações tendo em vista a validação dos resultados.

Para quem defende o trabalho com Investigação na sala de aula, “[...] investigar não representa propor e trabalhar com problemas difíceis. Significa, pelo contrário, trabalhar com questões que nos interpelem e que se apresentam no início de modo confuso, mas procuramos clarificar e estudar de modo organizado” (PONTE; BROCARDO; OLIVEIRA, 2016, p. 9).

Em contextos de ensino e aprendizagem, investigar não significa necessariamente lidar com problemas muito sofisticados na fronteira do conhecimento. Significa, tão só, que formulem questões que nos interessam, para os quais não temos repostas prontas, e procuramos essa resposta de modo tanto quanto possível fundamentado e rigoroso (PONTE; BROCARDO; OLIVEIRA, 2016, p. 9).

Para os autores, a IM é um recurso metodológico para aprender matemática fazendo matemática e, para isso, deve o professor trabalhar com tarefas de investigação que são mais amplas e têm um grau de dificuldade mais elevado e estrutura aberta, conforme ilustra a Figura 1.


Figura 1
Os diversos tipos de tarefas, em termos de graus de dificuldades e abertura.
Fonte: Ponte (2003, p. 5)

Assim, pode-se afirmar que as tarefas de IM se diferenciam das demais por serem situações-problema desafiadoras e abertas, permitindo aos alunos várias alternativas de exploração e investigação. Esse tipo de questão não é completamente definida, e cabe ao estudante exercer uma função essencial na sua concretização, o que requer uma participação mais ativa. O conceito de IM como atividade de ensino-aprendizagem, portanto,

[...] ajuda a trazer para a sala de aula o espírito da atividade matemática genuína, constituindo, por isso, uma poderosa metáfora educativa. O aluno é chamado a agir como um matemático, não só na formulação de questões e conjecturas e na realização de provas e refutações, mas também na apresentação de resultados e na discussão e argumentação com os seus colegas e o professor (PONTE; BROCARDO; OLIVEIRA, 2016, p. 23).

Na perspectiva de Serrazina et al. (2002), a formulação de problemas, a colocação de questões e o estabelecimento de objetivos por parte dos estudantes são um dos atributos essenciais da investigação. Assim, para que esse processo seja proporcionado, a investigação deve ter um carácter aberto e um ponto de partida pouco definido. Na mesma perspectiva, Pirie (1987, p. 2) destaca que em uma investigação não há resultados conhecidos para os estudantes e não se espera que estes alcancem “a resposta correta”, mas que explorem as possibilidades, formulem conjecturas e se convençam das suas descobertas. Recorrendo a uma metáfora geográfica, Pirie (1987, p. 2) aponta que em uma investigação “[...] a ênfase está em explorar uma questão da matemática em todas as direções. O objetivo é a viagem, não o destino”.

A utilização de tarefas investigativas nas aulas de Matemática é uma perspectiva de trabalho que possibilita um ensino mais provocativo e questionador e, para isso, as aulas devem ser organizadas em três fases: “(i) introdução da tarefa, quando o professor faz a proposta à turma, oralmente ou por escrito; (ii) realização de investigação, individual, aos pares, em pequenos grupos ou com a turma toda; (iii) discussão dos resultados, em que os alunos relatam aos colegas o trabalho realizado” (PIRIE, 1987, p. 25). Nesse processo, o professor, na concepção de Lamonato (2007, p. 85), “[...] assume diversos papéis: desafiar os alunos, avaliar o progresso deles, raciocinar matematicamente, apoiar seu trabalho dos alunos e promover reflexões, fornecer e recordar informações”. Tais papéis são uma ampliação do que trazem Ponte, Brocardo e Oliveira (2016). Além disso, o docente também deve ser aquele que proporciona condições para o raciocínio matemático, entendido por Oliveira (2008) como um conjunto de processos através dos quais novos conhecimentos são extraídos do conhecimento prévio. Esses processos incluem formular perguntas e resolver estratégias, conjecturar, generalizar, testar generalizações e justificá-las (LANNIN et al., 2011; MATA-PEREIRA; PONTE, 2017).

Mas o que é conjecturar, termo pouco ouvido na sala de aula do contexto brasileiro e em destaque quando o assunto é uma tarefa investigativa? O termo refere-se a um processo que envolve o raciocínio sobre relações matemáticas expressas por meio de afirmações - as conjecturas - que requerem uma exploração mais aprofundada para determinar se são, ou não, verdadeiras (LANNIN et al., 2011). Essas conjecturas, faladas ou não, podem se referir a casos particulares, como no exemplo: 1/7 é menor do que ⅕, pois a primeira fração tem um denominador maior. Tal afirmação exige que os estudantes procurem entender se tal afirmação é sempre verdadeira ou não, o que implica em uma transição importante: a de considerar objetos matemáticos individuais (como “essa fração”) para considerar uma classe de objetos (como “todos os números racionais na representação fracionária”). Assim, para mostrar se uma conjetura é verdadeira ou não, eles se afastam da singularidade dos objetos envolvidos para buscar semelhanças entre os diferentes casos. Ao fazer isso, eles desenvolvem conjeturas gerais, isto é, generalizações que os levam a invocar e desenvolver conceitos, símbolos e representações (MATA-PEREIRA; PONTE, 2012).

Ellis (2011) enfatiza que o processo de generalização evolui através da colaboração durante espaço propiciado em sala de aula, visto que ao buscar generalizar as pessoas compartilham um contexto sociomatemático específico e estão envolvidas em pelo menos uma das três ações: (i) identificar pontos em comum entre os casos; (ii) estender o raciocínio além do caso inicial; (iii) extrair resultados mais amplos de casos particulares.

A conjectura pode ser um ponto de entrada no raciocínio matemático (LANNIN et al., 2011), levando a generalizações que, por sua vez, levam à justificação, entendida como ‘razão suficiente para’, cuja pretensão é convencer a si e aos outros. Ela não apenas mostra que uma afirmação é verdadeira, mas também fornece razões para tal em todos os casos possíveis. Ao envolver-se em processos de justificação, os estudantes revisitam suas ideias matemáticas, levando não apenas a uma sólida compreensão dessas ideias, mas também ao desenvolvimento de novas ideias (WHITENACK; YACKEL, 2008). No decorrer desse processo, eles não apenas desenvolvem suas habilidades de raciocínio, mas também seu entendimento conceitual (KILPATRICK et al., 2001). Por meio das suas justificativas, pode-se acessar, por um lado, o quanto veem suas próprias generalizações e, por outro lado, qual é a compreensão dos envolvidos sobre o que é socialmente aceito como justificativa.

Por fim, pretende-se destacar que as tarefas de investigação merecem ser relatadas de modo a detalhar o trabalho realizado. Para isso, sugere-se: (i) descrever os passos percorridos para explorar a tarefa, explicando de forma clara e organizada. Procurar registrar tudo com o que trabalhou e fazer uso de esquemas, desenhos, tabelas, entre outros; (ii) resumir as aprendizagens após realizar o estudo; (iii) registrar um comentário geral em relação a tudo o que fizer. Além disso, a escrita pode incluir percepções e sentimentos, dificuldades enfrentadas, bem como de que modo decorreu o trabalho no grupo (PONTE; BROCARDO; OLIVEIRA, 2016).

3. Lakatos: a vida breve que deixou distintas contribuições

Em seus tenros 51 anos de vida, o húngaro Imre Lakatos (1922-1974) conseguiu lugar de destaque na filosofia da Ciência e da Matemática “[...] e é em grande parte lembrado pela sua metodologia de provas e refutações que desemboca na sua proposta de entender o desenvolvimento da ciência a partir da metodologia de programas de pesquisa” (BARBOSA, 2014, p. 35). Dentre suas várias obras publicadas evidenciam-se, nesse estudo, as principais ideias de duas delas - Lakatos (1978; 1979).

Para Cardoso (2018, p. 824, grifos do autor), as obras de Lakatos se distinguem em duas fases:

Na primeira, sua atenção era voltada exclusivamente para a Matemática, quando o autor escreveu os textos que subsidiaram a publicação de Provas e Refutações. Na segunda, Lakatos amplia seu interesse para as Ciências Empíricas e elabora a noção de Programas de Pesquisa Científica, mas não esquece a Matemática, apresentando a proposta do Quase Empirismo.

Tanto no Método de Provas e Refutações quanto nos Programas de Pesquisa, Lakatos deixa sua marca por meio da Heurística, ou seja, de sua arte de descoberta. Na primeira obra citada – Lakatos (1978) – mesmo não sendo consenso entre os autores da área, Lakatos afirma que a Matemática é um lugar onde se faz presente a falha, a dúvida e a crítica. Esta cresce por meio da correção/concorrência de teorias, sempre podendo ser questionada e revista. A obra desafia e critica o formalismo e o dedutivismo euclidiano ao evidenciar que o desenvolvimento do conhecimento matemático ocorre por meio um método racional.

Nos dois primeiros capítulos da obra o autor apresenta seu método de forma metafórica por meio da descrição de aulas nas quais um professor dialoga com os alunos[3] buscando provar o teorema de Descartes-Euler sobre poliedros, enunciando a seguinte conjectura[4]: ‘sendo V o número de vértices, A o número de arestas e F o número de faces, então tem-se V – A + F = 2 para todos os poliedros regulares’. Por meio do diálogo entre eles, é exposto, além do método de Lakatos, a história da demonstração do desenvolvimento da conjectura. Apresenta, ainda, os principais aspectos do método em três regras Heurísticas, que chamou de norma:

Norma 1. Se tivermos uma conjectura, disponhamo-nos a comprová-la e a refutá-la. Inspecionemos a prova cuidadosamente para elaborar um rol de lemas não triviais (análise de prova); encontremos contra-exemplos [sic] tanto para a conjectura (contra- exemplos globais) como para os lemas suspeitos (contra-exemplos [sic] locais).

Norma 2. Se tivermos um contra-exemplo [sic] global, desfaçamo-nos de nossa conjectura, acrescentemo-nos a nossa análise de prova um lema apropriado que venha a ser refutado pelo contra-exemplo [sic] e substituímos a conjectura desprezada por outra melhorada que incorpore o lema como uma condição. Não permitamos que uma refutação seja destituída como um monstro. Esforcemo-nos para tornar explícitos todos os “lemas implícitos”.

Norma 3. Se tivermos um contra-exemplo [sic] local, confiramos para verificar se ele não é também contra-exemplo [sic] global. Se for, podemos facilmente aplicar a Regra 2 (LAKATOS, 1978, p. 72-73, grifo nosso).

Esse processo é cuidadosamente explicado por meio de exemplos nos quais o leitor vai sendo convidado a olhar a matemática como ciência que avança conforme contrapomos suas teorias e provas. Tão importante quanto o resultado da prova são os caminhos percorridos, pois como bem expressa: “Estou interessado em provas mesmo que elas não realizem a tarefa pretendida. Colombo não chegou à Índia, mas descobriu coisa muito interessante” (LAKATOS, 1978, p. 29). Assim, a Matemática é apresentada não mais como Ciência pronta e acabada, mas como Ciência que convida a aventurar por suas teorias, duvidando das provas e testando-as com outras proposições em uma aventura além do simples exercício de chegar ao resultado já conhecido.

Por fim, nos dois apêndices da obra, o autor apresenta o conceito de Convergência Uniforme do Cálculo Diferencial e Integral e as vantagens de utilizar o enfoque heurístico em relação ao dedutivista[5] no desenvolvimento do conhecimento matemático.

A segunda obra – Lakatos (1979) – decorre de ideias influenciadas por outros teóricos, visto que durante a trajetória acadêmica e profissional, Lakatos teve a oportunidade de conhecer e conviver com célebres pessoas que influenciaram sua forma de pensar. Um deles, o qual afirma ter grande dívida pessoal, é Karl Raimund Popper (1902-1994). Este o ajudou a refletir e a mudar de opinião sobre a perspectiva hegeliana que havia adotado durante quase vinte anos, e lhe “[...] forneceu um conjunto muito fértil de problemas, um autêntico programa de pesquisa” (LAKATOS, 1989, apud SILVEIRA, 1996, p. 2019).

Em 1960, foi convidado para fazer parte da London School of Economics, prestigiado departamento, onde figuravam personalidades como Karl Popper, Joseph Agassi e John Watkins. Lakatos foi um crítico ativo das propostas de Popper e Kuhn e teve como amigo e crítico outro célebre epistemólogo, Paul Feyerabend. É com base em Popper e Kuhn, que Lakatos chama a sua opção de uma terceira via em que utiliza como base estes autores, procurando resolver os problemas destas duas propostas (BARBOSA, 2014, p. 36).

Esta terceira via partia do seguinte quesito: “Em primeiro lugar, afirmo que a unidade descritiva típica de grandes realizações científicas não é uma hipótese isolada, mas sim um programa de pesquisa” (LAKATOS, 1973). Assim, a ideia principal partia de um coletivo como conjunto de proposições/teorias e não elementos isolados. Lakatos seguia afirmando que a “[...] própria ciência como um todo pode ser considerada um imenso programa de pesquisa com a suprema regra heurística de Popper: “arquitetar conjecturas que tenham maior conteúdo empírico do que as suas predecessoras”” (LAKATOS, 1979, p. 162).

A principal diferença em relação à versão original de Karl Popper e a apresentada por Lakatos reside na concepção de que a crítica destrutiva não elimina um programa, pois só a crítica construtiva pode obter êxitos reais; os resultados só́ se tornam visíveis a posteriori e através da reconstrução racional. A tese de Lakatos nos remete a ideia do falseacionismo sofisticado, ou seja, trabalha com a ideia da superação ao invés da refutação.

De forma simplificada, pode-se afirmar que um programa de pesquisa para Lakatos pode ser caracterizado por seu núcleo firme, pela heurística positiva e negativa. O núcleo firme (hard core) seria o conjunto de teorias ou conjunção de hipóteses contra as quais não é aplicada a retransmissão da falsidade. Tal núcleo é ‘convencionalmente’ aceito e, portanto, irrefutável por decisão provisória (LAKATOS, 1983). Já o núcleo firme é constituído pelas hipóteses e/ou teorias chamadas auxiliares, tendo a função principal de proteger o núcleo firme. Esse cinturão pode e deve ser modificado, devendo ser constantemente expandido e complementado para que o programa seja considerado progressivo (SILVEIRA, 1996). Quanto às duas heurísticas - positivas e negativas -, ambas têm por objetivo solucionar as anomalias presentes nos programas de pesquisa e podem transformá-las em evidências para o programa.

A heurística negativa funciona como um escudo protetor do núcleo firme, pois “[...] proíbe que, frente a qualquer caso problemático, “refutação” ou anomalia, seja declarado falso o “núcleo firme”; a falsidade incidirá sobre alguma(s) hipótese(s) auxiliar(es) do “cinturão protetor”” (SILVEIRA, 1996, p. 2, grifos do autor). Se a heurística negativa protege o núcleo firme, a heurística positiva consiste em “[...] um conjunto parcialmente articulado de sugestões ou palpites sobre como mudar e desenvolver as “variantes refutáveis” do programa de pesquisa, e sobre como modificar e sofisticar o cinto de proteção “refutável”” (LAKATOS, 1979, p. 165, grifos do autor). Logo, na situação de se obter algum resultado/fato diferente das previsões teóricas do programa, é função da heurística positiva orientar as modificações que devem ser feitas no cinturão protetor para superá-las (SILVEIRA, 1996), tentando apresentar a direção de desenvolvimento do programa. Outra função importante da heurística positiva refere-se ao fato de, desde o início, muitos programas de pesquisa terem o que Lakatos chamava de oceano de anomalias. A heurística, então, tem o papel de impedir “[...] que os cientistas se confundam, indicando caminhos que poderão, lentamente, explicá-las e transformá-las em corroborações” (SILVEIRA, 1996, p. 222).

É considerável, em um programa, a heurística positiva auxiliar os cientistas a resolverem as anomalias e ampliarem seus estudos teóricos para explicar os fenômenos. Quando isso ocorrer, tem-se um programa progressivo.

Um programa é "teoricamente progressivo" quando cada modificação no "cinturão protetor" leva a novas e inesperadas predições ou retrodições. Ele é "empiricamente progressivo" se pelo menos algumas das novas predições são corroboradas. (SILVEIRA, 1996, p. 223, grifos do autor).

No entanto, também podem haver programas regressivos, quando se tem um atraso no crescimento teórico em relação ao empírico, ou seja, descobertas são feitas antes das explicações teóricas. É característica forte desse tipo de programa que a explicação teórica seja post-hoc ou que seja apresentada por um programa rival (LAKATOS, 1983 apud SILVEIRA, 1996). Um programa pode ser regressivo, mas se sustentar por muitos anos.

A exclusão ou fim de um programa é dada de forma racional através da superação de um programa por outro. Quando um programa começa a apresentar muitas explicações post-hoc, ou seja, teorias atrasadas em relação à experiência, aos poucos os cientistas vão migrando para outro programa, fazendo com que o primeiro seja superado. É nesse processo de programas rivais e de pluralismo teórico que a ciência progride, sendo esse um processo lento e que pode levar décadas para ocorrer.

A seguir, apresenta-se um mapa conceitual (Figura 2) com o objetivo de resumir os principais conceitos ligados à Metodologia dos Programas de Pesquisa de Lakatos.


Figura 2
Mapa conceitual que expressa as principais ideias do Programa de Pesquisa de Lakatos
Fonte: Marques (2013, p. 23)

4. Um só autor, a mesma tendência e duas formas de olhar

Nesta parte do estudo são tecidas considerações que explicitam as implicações de duas pesquisas acerca da epistemologia de Lakatos e a IM, obtidas na fase de seleção e codificadas como E1 e E2. Ambas apresentam estudo exploratório e bibliográfico, características da pesquisa qualitativa.

Cada uma delas utilizou uma das duas obras de Lakatos citadas anteriormente, direcionando ‘olhares’ para uma mesma tendência dentro da Educação Matemática. E1 utilizou Lakatos (1979) como principal aporte teórico para olhar para esta tendência, classificando a mesma como um Programa de Pesquisa Científica. Já E2 utilizou Lakatos (1978), buscando evidenciar convergências e divergências entre a tendência Investigações Matemáticas e as ideias de Lakatos na referida obra.

E1 buscou por respostas ao seguinte questionamento: “Quais aspectos caracterizam a Investigação Matemática no contexto da Educação Matemática como um programa de pesquisa na perspectiva Lakatosiana?” (WICHNOSKI; KLUBER, 2015, p. 1). Os autores optaram por três pertinentes palavras-chave - Filosofia da Educação Matemática, Epistemologia e Tendências Metodológicas. Eles começam situando a IM como uma tendência metodológica de ensino relativamente nova no campo da pesquisa em Educação Matemática, o que a torna uma área “complexa e aberta a teorizações” (WICHNOSKI; KLÜBER, 2015, p. 65). Na sequência, citam pesquisas anteriores, dando ênfase a importância e certa urgência de realizar estudos tratando de aspectos epistemológicos ligados ao tema, extrapolando a esfera da experiência pedagógica rumo a análises teóricas mais profundas.

Tais aspectos, segundo os autores, justificaram pensar a IM sob o ponto de vista da epistemologia da ciência, sendo lançado o desafio de refletir sobre a tendência segundo a epistemologia de Lakatos e tendo em vista a possibilidade explicativa que observaram para compreender esta IM. Assim, a partir do aporte teórico a Metodologia dos Programas de Pesquisa de Lakatos, os autores buscaram “[...] compreender a Investigação Matemática numa perspectiva Lakatosiana” (WICHNOSKI; KLÜBER, 2015, p. 67). Em relação ao aporte, apresentaram uma breve explicitação a respeito dos conceitos de núcleo firme, cinturão protetor, heurística negativa e positiva, introdução essencial para o capítulo que descreve a tendência IM como um Programa de Pesquisa Lakatosiano. Esta parte é finalizada com um mapa conceitual representativo dos principais conceitos.

Antes de iniciarem a descrição da tendência como um programa de pesquisa, os autores apresentam a concepção de IM derivada dos autores Ponte, Brocado e Oliveira (2016), que passou a ser entendida “[...] como uma das tendências metodológicas que compõem o campo de estudo da Educação Matemática e que podem compor a prática docente para o ensino da Matemática” (WICHNOSKI; KLÜBER, 2015, p. 71). Apontam a possibilidade de Ponte, Brocado e Oliveira (2016) fornecerem uma descrição mais detalhada e específica a respeito de como os professores podem utilizar a IM em sala de aula, perspectiva essa caracterizada “[...] pelo estilo conjectura-teste-demonstração em que o aluno extrai informações, realiza testes de validação sobre estas informações, refina-as se necessário e, por fim, demonstra e comprova os resultados obtidos” (WICHNOSKI; KLÜBER, 2015, p. 72).

O estudo segue procurando discorrer sobre a IM como um programa, discutindo acerca de qual deve ser o núcleo firme da tendência, quais os aspectos fundamentais que caracterizam a IM, dentre outros. Para essa e outras questões epistemológicas, adensam resultados de outros estudos, a saber: Ponte, Brocado e Oliveira (2016); Wichnoski e Kluber (2015); Burak e Kluber (2008); Ferreira (2010); Kluber e Pereira (2009); Lamonato e Passos (2011) e Ponte (2003). Concluem afirmando que fazem parte do núcleo firme deste programa “[...] a matemática, o ensino, a aprendizagem, a comunicação e atividades investigativas” (WICHNOSKI; KLÜBER, 2015, p. 72, grifos do autor).

Na sequência, é realizado um exercício semelhante para apresentar os elementos que compõem o cinturão protetor, utilizando como referência os autores anteriormente mencionados e chegando à conclusão de que a Educação Matemática, abarcando a antropologia, a filosofia, a psicologia e a sociologia, são elementos que o constituem, juntamente com a pluralidade e a interdisciplinaridade, as teorias e as perspectivas de IM que pairam na comunidade de Educação Matemática (WICHNOSKI; KLÜBER, 2015).

Em outras palavras, as contribuições de diferentes teorias que podem circular pela Educação Matemática podem trazer elementos que interfiram na constituição desse cinturão protetor, como por exemplo, o papel de atividades contextualizadas ou do cotidiano. Contudo, há que se discutir esses impactos em termos da heurística positiva. (WICHNOSKI; KLÜBER, 2015, p. 75)

Ainda na concepção dos autores, o programa descrito não pode ser considerado um programa maduro[6] por ser campo recente dentro da pesquisa em Educação Matemática. Outro ponto levantado é que há “[...] várias anomalias existentes que carecem de explicações ou solicitam reformulações e ajustes no cinturão protetor” (WICHNOSKI; KLÜBER, 2015, p. 75). Como exemplos dessas anomalias, temos a “[...] interpretação de proximidade dada à Investigação Matemática e a Resolução de Problemas” (WICHNOSKI; KLÜBER, 2015, p. 75). Destacam isso como anomalia, pois se houver o entendimento de forma equivocada da IM, pode haver abalo em entes do núcleo firme, diferente nas duas tendências. Outra anomalia citada “[...] é a ausência de uma definição que permita compreender epistemologicamente o que é a Investigação Matemática no contexto da Educação Matemática” (WICHNOSKI; KLÜBER, 2015, p. 76).

Outro questionamento importante feito pelos autores diz respeito à IM ser um programa de pesquisa progressivo ou regressivo. Quanto a isso, afirmam que o mesmo pode ser caracterizado como progressivo, pois mesmo tendo anomalias, como as expostas, elas podem ser explicadas com ajustes no cinturão protetor, o que faz dele um programa que pode explicar fatos passados e prever fatos novos.

Por exemplo, o fato de assumir o estilo conjectura-teste-demonstração, como aspecto que mais fortemente caracteriza a Investigação Matemática, além de poder ser explicado com ajustes na teoria auxiliar que assim o concebe, enseja reflexões que dizem da possibilidade de este ser um aspecto particular das investigações que buscam trabalhar conceitos algébricos ou que buscam generalizar resultados e propriedades. Isso por sua vez direciona as reflexões para o pensamento de que o estilo depende da natureza da atividade (fato novo). (WICHNOSKI; KLÜBER, 2015, p. 77-78)

O segundo estudo que discute a IM na perspectiva de Lakatos – E2 - pretendeu “[...] apresentar algumas reflexões sobre possíveis aproximações entre a filosofia lakatosiana na construção do conhecimento matemático e a metodologia de investigações matemáticas em sala de aula” (SILVA; MOURA, 2015, p. 277). Dentre as palavras-chave utilizadas no texto - Lakatos, Falibilismo, IM em Sala de Aula, Filosofia da Matemática e Educação Matemática – apenas a última é comum à E1. Usam como principal aporte teórico a obra de Lakatos (1978), apontando esta como sua obra prima, bem como aportes teóricos[7] como Davis e Hersh (1985), Garnica (1996), Jesus (2009), Cardoso (1997), Lakatos (1976; 1978) e Molina (2001) para descrever o método exposto na mesma.

Destacam, no início do estudo, que há uma grande aproximação entre o método de provas e refutações e o trabalho com tarefas investigativas em sala de aula, sendo esse um modo de ver o avanço da matemática.

Lakatos iniciou a construção de uma epistemologia falibilista (ou não dogmática) da matemática, afirmando que a matemática informal é uma ciência que cresce por um processo de críticas sucessivas, de refinamento de teorias e do processo de teorias novas e conflitantes, algo que contrapõe ao modelo dedutivo daquela formalizada. (SILVA; MOURA, 2015, p. 279-280).

Quando destinam espaço para descrição da obra de Lakatos, concordam com Cardoso (1997, apud SILVA; MOURA, 2015, p. 280), que aponta que

[...] as principais propostas de Lakatos nessa obra são: a tentativa de formular uma crítica à visão formalista da Filosofia da Matemática, (como já destacamos), mostrar que o conhecimento matemático se dá por meio de um método racional, denominado por Lakatos de Método de Provas e Refutações e mostrar que o conhecimento já produzido só pode ser avaliado de duas formas. Na primeira, o conhecimento é dito progressivo, visto que prediz novos fatos e explica os antigos, e utiliza argumentos internos da teoria para produzir novos conhecimentos (há um aumento do conteúdo). Na segunda, o conhecimento pode ser avaliado como degenerativo, que significa que já não prediz mais conhecimentos novos (grifos do autor).

Há um esforço em explicar a dinâmica do método de provas e refutações de Lakatos no estudo de Silva e Moura (2015). Prova disso é que os autores fazem uso de imagens retiradas dos exemplos contidos na obra, bem como trechos dos diálogos entre o professor e os alunos, também retirados da obra. Além disso, apresentam um quadro síntese baseado em Molina (2011), com um resumo da heurística do método e um esquema proposto por Davis e Hersh (1985) com a Heurística da descoberta Matemática proposta Lakatos. Os autores deram destaque, também, a um ponto considerado significativo dentro da obra – o “[...] padrão para o desenvolvimento de conceitos, conjecturas, provas e teorias matemáticas, podendo ser comparada a uma empresa coletiva” (SILVA; MOURA, 2015, p. 285), dando uma grande importância ao papel social da Matemática, no sentido das negociações e interações que ocorrem para o desenvolvimento da mesma.

Ao final, trazem Garnica (1996, apud SILVA; MOURA, 2015, p. 285) para afirmar que as concepções presentes nessa obra trouxeram uma série de implicações para a Educação Matemática, tais como “[...] a exposição de correntes filosóficas da matemática, as noções de prova, as limitações da linguagem formal, o indutivismo e dedutivismo”. Outros autores são citados neste momento para justificar a crença de que a tendência IM poderia ter convergências com o método de Lakatos.

A partir dessas considerações, defendem a pertinência de estudar essa obra de Lakatos (1978), aproximando-a da IM de Ponte, Brocado e Oliveira (2016). Estes autores são referenciados tanto para trazer a definição de IM adotada, quanto para afirmar que tal metodologia de ensino envolve quatro momentos.

Por fim, concluem que, ao trabalhar com a metodologia de investigação, o professor traz para dentro da sala de aula a dinâmica das atividades de Matemática Pura, levando os alunos a se comportem como verdadeiros matemáticos e dando a oportunidade de não somente trabalharem com provas e refutações, mas apresentarem os seus progressos, as suas descobertas e exercitarem suas capacidades de discussão e argumentação ao mostrarem e defenderem seus resultados para os colegas.

Dentre as possíveis aproximações entre as duas concepções, a primeira é o “[...] destaque no processo de trabalho com a matemática” (SILVA; MOURA, 2015, p. 288), pois em ambas a Matemática é objeto central das discussões, “[...] seja na busca e refinamento de novas teorias, ou na apropriação de conteúdos matemáticos em situações escolares” (SILVA; MOURA, 2015, p. 288). Nesse fazer, o estudante desmistifica a Matemática como sendo ciência pronta e acabada e passa a vê-la “[...] como atividade humana, passível de falhas” (SILVA; MOURA, 2015, p. 289).

Outra convergência apontada é “[...] o processo de experimentação ingênua da hipótese (ou procura por regularidades)” (SILVA; MOURA, 2015, p. 289). Ingênua, pois é por meio da própria investigação que o conhecimento matemático se desvela, tanto no momento de uma demonstração, quanto para uma melhor compreensão da mesma. Nesse modo de trabalhar, os estudantes podem testar suas conjecturas na tentativa de confirmar definições, tais como se os ângulos opostos de um paralelogramo permaneceriam iguais se modificássemos suas dimensões. É nesse fazer, no qual o estudante é desafiado a discutir, discordar e duvidar das proposições, que o conhecimento Matemático acontece. Outra convergência marcante entre ambas é a “[...] valorização das ideias dos estudantes” (SILVA; MOURA, 2015, p. 289).

A intenção contida em cada uma das concepções foi apontada como a principal diferença entre elas. Para os autores, o cuidado residiu em explicar a estrutura da Matemática, não sendo foco o caráter pedagógico da mesma. Outra diferença apontada é no ponto de partida. Em Lakatos (1978), este é dado pela demonstração. Já no trabalho com IM, a demonstração (ou generalização), na maioria das vezes, aparece como o processo final da tarefa, realizada após diversas discussões e reflexões entre os estudantes (PONTE; BROCARDO; OLIVEIRA, 2016). Para fechamento, trazem outro ponto que as diferencia: a etapa de reformulação. Em Lakatos, essa é norteada pelos contraexemplos locais e globais, que vão mudando a forma da demonstração e das conjecturas. Já no trabalho com investigação, os estudantes são levados a “[...] realizarem novos testes nas ideias formuladas, propiciando um novo pensar sobre a elaboração da proposição” (SILVA; MOURA, 2015, p. 291, grifos dos autores).

Ao final do estudo concluem que, mesmo cientes das diferenças entre as teorias, elas não somente têm convergências, mas “[...] a filosofia de Lakatos em Provas e Refutações pode ter influenciado consideravelmente os primeiros trabalhos com investigações matemáticas na educação e, posteriormente, o melhoramento desta metodologia” (SILVA; MOURA, 2015, p. 292). Isto porque ele buscou dar bastante ênfase aos problemas como forma de crescimento da Matemática, posição essa comum a muitos educadores matemáticos que trabalham com a tendência de IM em suas aulas.

Tecidas apresentações das duas pesquisas que contemplam o objetivo de estudo, na sequência apresentam-se reflexões decorrentes do confronto delas em sua base teórica, confronto esse que servirá de base para uma avaliação crítica.

5. (In)Concluindo o estudo

Reflexões pretendidas nesse estudo revelam, a partir das implicações das duas pesquisas, possibilidades de analisar a IM sob a perspectiva epistemológica de Lakatos, seja na busca de adensar teoricamente aspectos que dizem respeito à tendência, seja no intuito de apontar possíveis aproximações, como ilustrado na Figura 3 e no Quadro 1.


Figura 3
A Tendência de IM representada através de um Programa de Pesquisa Lakatosiano segundo Wichnoski e Klüber (2015)
Fonte: Elaborado pelas autoras.

Na primeira pesquisa - E1 - os autores apresentaram a IM como um Programa de Pesquisa Lakatosiano, avaliando e descrevendo quais elementos estariam dentro do núcleo firme, quais comporiam o cinturão protetor e vislumbram algumas anomalias desse programa, dando sugestões para dirimir ou contorna-las.

Já em E2, os autores buscaram mostrar as convergências entre o método de Lakatos de Provas e Refutações e o trabalho com IM. Nele, apresentaram, de forma prudente, as possíveis divergências, sintetizadas no Quadro 1.

Quadro 1
Aproximações e distanciamentos do método de Lakatos e o trabalho com IM segundo Silva e Moura (2015)

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Em E1 os autores, ancorados na perspectiva epistemológica de Lakatos, visam contribuir para o avanço teórico da IM face a carência de discussões acerca dos aspectos filosóficos e epistemológicos. A IM é vista, então, como ciência que necessita de teorização e não apenas como prática pedagógica, fato mais destacado em E2.

Nesse, os autores objetivam apresentar possíveis aproximações da IM quando utilizada como atividade de ensino e de aprendizagem que propicia a formulação de questões, a elaboração de conjecturas, teste, refinamento das questões, demonstração e seu refinamento, bem como na “[...] apresentação de resultados e na discussão e argumentação com os seus colegas e o professor (PONTE; BROCARDO; OLIVEIRA, 2016, p. 23).

O entendimento de que a Matemática é Ciência que cresce por meio das críticas que levam ao refinamento e análise das teorias já existentes vai ao encontro do modelo dedutivo (SILVA; MOURA, 2015), e pode ser considerado como convergente com a Metodologia dos Programas de Pesquisa de Lakatos. Embora em E1 os autores não tenham apresentado este ponto em seu texto, o presente estudo indica que é no processo de programas rivais e de pluralismo teórico que a ciência progride (LAKATOS, 1979). Assim, pode-se inferir que o progresso da Ciência e da Matemática ocorrem através dessa mesma dinâmica.

A forma de avaliar o conhecimento como progressivo ou degenerativo também é ponto comum entre as duas pesquisas. Em E2, os autores utilizam aportes de Cardoso (1997) para afirmar que o conhecimento matemático só pode ser avaliado de duas formas: progressivo ou degenerativo - progressivo quando é capaz de predizer novos fatos e explicar/contornar anomalias, caracterizando um constante aumento de conteúdo; ou degenerativo, quando não dá mais conta de prever novos conhecimentos. Em E1, tais conceitos são apresentados de forma semelhante e avaliam a IM como um programa Progressivo que carece de fortalecimento no cinturão protetor, pois nas anomalias percebidas pelos autores há uma explicação teórica que é capaz de contornar e/ou dirimir as mesmas.

No entendimento do conceito de IM observam-se diversos pontos em comum, até mesmo por utilizarem a mesma base teórica. Concordam que a IM é um campo de estudo da Educação Matemática em que o aluno é agente central de todo processo, tendo o papel de extrair informações, formular questões e trabalhar na perspectiva conjectura-teste-demonstração. Ademais, concordam que trabalhar com Investigação propicia uma noção mais completa e ampla da Matemática, mostrando que o ato de investigar não envolve somente a relação entre objetos matemáticos, podendo também fazer referência à realidade.

Por derradeiro, assinalam-se alguns pontos das duas pesquisas que poderiam ser analisados em estudos futuros. Em relação a E1, acredita-se que a pesquisa tem potencial para aprofundamento, indo para um viés heurístico, tanto negativo quanto positivo. Ou seja, dentro do Programa, ilustrar como a heurística negativa atuaria para proteger o núcleo firme do ataque das anomalias por eles citadas. No que tange à heurística positiva, como esta possibilitaria caminhos para a modificação do cinturão protetor e como contornaria ou explicaria as anomalias, transformando as mesmas em corroborações.

Já a respeito da E2, diante das aproximações e distanciamentos expresso no Quadro 1, não foi possível perceber um acréscimo substancial das convergências em relação às divergências entre essas duas teorias, o que leva a pensar no motivo que induziu os autores a expressarem, no título do artigo, destaque somente às aproximações. Outro ponto que acreditamos ser propício a ser tema de uma nova investigação seria sobre a afirmação dos autores de que a teoria de Lakatos influenciou nos primeiros trabalhos de IM.

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Notas

[3] No diálogo, os alunos representam pontos de vista filosóficos diferentes e, no texto, analisam criticamente a prova dada, descobrindo contraexemplos e apontando tentativas de reformulação.
[4] Termo utilizado para referir-se a uma afirmação que necessita de prova e de teorema uma conjectura já provada, sendo que sua prova já foi analisada criticamente pela comunidade científica
[5] Em relação ao dedutivismo, Lakatos (1978, p. 186) afirma que este “oculta a luta, esconde a aventura. Toda a história evapora, as sucessivas formulações provisórias do teorema durante a prova são relegadas ao esquecimento enquanto o resultado final é exaltado como infalibilidade sagrada.”
[6] Os autores usaram esse termo no sentido de não estar completamente formado, ou não ter atingido seu completo desenvolvimento.
[7] Esses referenciais se encontram apenas no estudo de Silva e Moura (2015) por não ser referências utilizadas no presente estudo.

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