Artigos Científicos

Etnomatemática e formação de professores de matemática: uma reflexão sobre currículos de universidades públicas brasileiras

Ethnomathematics and Mathematics Teacher Education: a reflection on curricula of Brazilian public universities

Etnomatemática y Formación de Profesores de Matemáticas: una reflexión sobre currículos de universidades públicas brasileñas

Antônio Vieira Lima Junior
Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão, Brasil
Stéfany Silva Araújo
Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão, Brasil
Victor Coelho Oliveira
Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão, Brasil
José Milton Lopes Pinheiro
Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão, Brasil

Revista de Educação Matemática

Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil

ISSN: 2526-9062

ISSN-e: 1676-8868

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 18, e021052, 2021

sbem.sp.revista@gmail.com

Recepção: 05 Maio 2021

Aprovação: 27 Junho 2021

Publicado: 09 Outubro 2021



DOI: https://doi.org/10.37001/remat25269062v18id572

Copyright Revista de Educação Matemática 2021.

Resumo: Nesta pesquisa buscamos compreender: como a Etnomatemática se faz presente nos currículos de formação de professores de matemática do Brasil? Para tanto, realiza-se um estudo qualitativo, de cunho documental, analisando Projetos Políticos de Curso de licenciaturas em Matemática de diferentes universidades públicas dos diferentes estados brasileiros. O movimento da Análise de Conteúdos nos legou três Núcleos de Compreensão: Etnomatemática como disciplina curricular ou como tema de uma disciplina; Etnomatemática como fundamentação teórica e prática ao processo de formação do professor de matemática; A ausência da Etnomatemática no currículo de formação de professores de Matemática. Constatamos que embora haja iniciativas que propõem a Etnomatemática nessa formação, a ausência ou a pouca explicitação da Etnomatemática são mais frequentes e, com isso, reafirmamos a relevância de um movimento de institucionalização dessa área na formação de professores de matemática.

Palavras-chave: Etnomatemática, Formação de Professores de Matemática, Currículo.

Abstract: In this research we seek to understand: how is Ethnomathematics present in the training curricula of mathematics teachers in Brazil? To this end, a qualitative study of documentary nature is carried out, analyzing Political Course Projects of degrees in Mathematics from different public universities in different Brazilian states. The Content Analysis movement has bequeathed us three Nuclei of Understanding: Ethnomathematics as a curricular subject or as the content of a subject; Ethnomathematics as a theoretical and practical foundation for the mathematics teacher education process; The absence of Ethnomathematics in the mathematics teacher education curriculum. We found that although there are initiatives that propose Ethnomathematics in this training, the absence or little explanation of Ethnomathematics are more frequent, and with that, we reaffirm the relevance of an institutionalization movement in this area in the training of mathematics teachers.

Keywords: Ethnomathematics, Mathematics Teacher Education, Curriculum.

Resumen: En esta investigación buscamos comprender: ¿cómo se hace presente la Etnomatemática en los currículos de formación de profesores de matemáticas de Brasil? Para tanto, se realiza un estudio cualitativo, de cuño documental, analizando Proyectos Políticos de Curso de licenciaturas en Matemáticas de diferentes universidades públicas de los diferentes estados brasileños. El movimiento de Análisis de Contenidos nos legó tres Núcleos de Comprensión: Etnomatemática como disciplina curricular o como tema de una disciplina; Etnomatemática como fundamentación teórica y práctica al proceso de formación del profesor de matemáticas; La ausencia de la Etnomatemática en el currículo de formación de profesores de Matemáticas. Constatamos que si bien hay iniciativas que proponen el Etnomatemática en esa formación, la ausencia o la poca explicitación de la Etnomatemática son más frecuentes, y con eso, reafirmamos la relevancia de un movimiento de institucionalización de esa área en la formación de profesores de matemáticas.

Palabras clave: Etnomatemática, Formación de Profesores de Matemáticas, Currículo.

1. Introdução

A Matemática é uma ciência ampla e complexa dada sua fundamentação sustentada por postulados, axiomas, teorias. Ela é um ramo do conhecimento importante para a resolução de problemas em diferentes áreas científicas, bem como em ambientes sociais, quando compreendida como ciência aplicada. Entende-se que seja nessa aplicação que a Etnomatemática se faz presente e relevante, por pensar a Matemática para além e previamente à sua formulação científica, como um conhecimento independente, que nasce com configurações distintas nas diferentes comunidades socioculturais. Então, se há diferentes configurações pelas quais a matemática se mostra, há também diferentes modos de aplicar-se em resolução de problemas, comuns a cada ambiente natural e social.

A Etnomatemática valoriza as diferentes culturas em sala de aula, considerando os conhecimentos nelas aprendidos e desenvolvidos. D’Ambrósio (2008) explica que diferentes culturas produzem diferentes matemáticas, ou seja, cada povo, tribo ou nação tem e desenvolve matemática, a seu modo, dadas as especificidades da linguagem, do espaço vivenciado e do fazer. Assim, a Matemática disseminada no sistema escolar, de caráter europeu, é um entre os modos de ser das matemáticas, e são todos esses modos de ser, etnomatemáticas. Entendemos que essa diversidade deve compor não só o currículo escolar, mas também o currículo de formação de professores. Mas, como se realiza essa formação? Como nela a Etnomatemática se faz presente?

Tais perguntas solicitam primeiro compreender se há a presença da Etnomatemática em currículos de formação de professores de matemática. A possibilidade da ausência, uma vez compreendida a relevância da Etnomatemática, é uma inquietação que move esta pesquisa. Movidos por essa inquietação, bem como pelas perguntas acima postas, buscamos neste texto compreender e explicitar: como a Etnomatemática se faz presente nos currículos de formação de professores de matemática do Brasil? Tal compreensão, entendemos ser possível mediante realização de um estudo qualitativo, de cunho documental. Assim, realizamos análise de Projetos Políticos de Curso (PPC) de licenciaturas em Matemática de diferentes universidades públicas brasileiras.

2. O pensar que constitui a Etnomatemática

Em agosto de 1984, no quinto congresso internacional de Educação Matemática, em Adelaide, na Austrália, D’Ambrósio apresentou uma teorização que expunha sua pesquisa encaminhando para a realização do programa que foi denominado Etnomatemática. Nessa época o ensino de Matemática era embasado em métodos mecânicos, de repetição, sem abertura ao diálogo e criação, que distanciavam os alunos de seus contextos socioculturais, não considerando as produções de sentidos e de significados matemáticos que pudessem se mostrar no âmbito do mesmo.

Tal programa vai de encontro aos métodos que distanciam o ensino escolar do cotidiano do aprendiz, pois “o propósito educacional da etnomatemática é buscar o entendimento de como fazer Matemática e suprir as dificuldades e as contradições do ensino de Matemática em diferentes contextos socioculturais” (COSTA et al., 2014, p.3). Com isso, pode-se capacitar os alunos para “manejar situações reais, que se apresentam a cada momento de maneiras distintas. Não se obtém isso com simples capacidade de fazer contas nem mesmo com a habilidade de solucionar problemas que são apresentados aos alunos de maneira adrede preparada” (D’AMBRÓSIO, 1998, p. 16).

Esse entendimento contribui à compreensão da terminologia da palavra Etnomatemática, que é formada por três termos que a compõe: Etno, de ambiente natural, social e imaginário; Matema, de explicar, aprender, conhecer ou lidar com; Tica, que diz de modos, estilos ou técnicas (D’AMBRÓSIO, 1994). Com isso, entende-se que uma matemática, para a Etnomatemática, é aquela que se mostra nos diferentes contextos e situações das relações humanas, ou seja, não é una, não é universal, se diversifica por serem também diversos os contextos socioculturais, é pluralidade que compõe etnomatemáticas. Assim, o que chamamos de matemática acadêmica, é, nas palavras de D’Ambrósio (2008), uma forma de etnomatemática, que se desenvolveu historicamente sobre solo natural, social e cultural europeu, e que, portanto, foi se adaptando às situações desse contexto.

Ou seja, cada povo tem suas características próprias e peculiaridades de produzir conhecimentos, sejam eles científicos ou não científicos, variando-se a linguagem e a sistemática de produção, que pode atualizar-se com o passar do tempo e com as influencias das interrelações das etnomatemáticas que vão dialogando entre si à medida que grupos sociais compartilham suas vivências. Por exemplo, as matemáticas correlatas a grupos sociais identificáveis, como “sociedades tribais nacionais, grupos de obreiros, crianças de uma certa categoria de idade, classes profissionais, etc. Sua identidade depende amplamente dos focos de interesse, da motivação e de certos códigos e jargões que não pertencem ao domínio da Matemática acadêmica” (D’AMBRÓSIO, 1994, p. 89).

Quando nós, “estrangeiros”, adentramos e analisamos uma produção desses locais à luz de nossas verdades, da matemática acadêmica, estamos fadados a apontar erros, como por exemplo, os relacionados ao modo de operar, de estabelecer relações e medidas. No entanto, numa comunidade específica tais modos são coerentes e podem produzir verdades incontestáveis aos sujeitos que habitam essa comunidade. É com atenção a essa sobreposição e subjugação de conhecimentos, em detrimento de outros, que surge e avança a Etnomatemática.

Na Educação, a valorização de um modo de ser, ou de uma identidade, dá-se na imediaticidade das vivências que a prática pedagógica pode propiciar aos alunos, conhecendo à priori e propondo um desenvolvimento que destaque sua cultura. No entanto, mesmo a imediaticidade vivida traz correlatos temporais e históricos, que não são só base de uma identidade sociocultural, mas que fluem na constituição da mesma, sempre dizendo do passado e projetando o por vir: os novos conhecimentos agregados, as relações interpessoais e interculturais.

Ou seja, a Etnomatemática se preocupa em entender o fazer matemático no decorrer da história da humanidade, no contexto de diferentes grupos. Sendo assim, a história da Etnomatemática é correlata à história das civilizações. Reconhecer essa história, e suas implicações no desenvolvimento de cada cultura, é um modo de legitimar a identidade aqui tematizada, pois se não se compreende outros modos de ser do conhecimento, há um movimento de exclusão, implicando em deslegitimação das práticas sociais, do fazer e da percepção, que são primados de todo e qualquer conhecimento humano, dentre os quais os chamados conhecimentos matemáticos.

As compreensões aqui trazidas expõem o pensamento constituinte da Etnomatemática, que no âmbito do ensino avança visando formar indivíduos para a cidadania, para a ciência e tecnologia, para o mundo globalizado, produzindo significados e compreensões de mundo, mas sem marginalizar ou desconsiderar a cultura e vivências de cada um desses indivíduos.

Notadamente, expõe-se aqui sobre uma Educação Etnomatemática, que contraria a métrica de uma pedagogia tacitamente posta que fixa e subentende a universalidade da Matemática e de seu ensino. Essa é uma contribuição das mais importantes em Educação Matemática e, por essa contribuição ser especialmente atribuída ao Prof. Dr. Ubiratan D’Ambrósio, ele, em 2001, foi laureado pela Comissão Internacional de História da Matemática com o prêmio Kenneth O. May por contribuições à história da Matemática. D’Ambrósio ganhou também a medalha Felix Klein, entregue pela Comissão Internacional de Instrução Matemática.

3. Etnomatemática e currículo de formação de professores de matemática

Quando os currículos atuais enfatizam a necessidade de inserção de aspectos socioculturais no ensino, a fazem buscando correlatos entre o saber científico e o saber do cotidiano. O olhar que busca por correlatos, por si só é excludente, pois parte de uma base de critérios que previamente define o que pode convergir. Isso deixa às margens uma gama de conhecimentos possíveis e relevantes à formação do aluno. Tem-se, assim, o que Freire (1987) em a Pedagogia do Oprimido chama de subordinação do conhecimento cotidiano ao conhecimento escolar. Os mecanismos instituídos, dentre os quais o currículo dominante (pautado em conteúdos e práticas universais), acabam por ocultar as vivências dos alunos, bem como os conhecimentos trazidos por eles. Tais mecanismos colocam o aluno, com toda amplitude de seu modo de ser e de estar, refém do que o currículo e a escola impõem como um modo de ser e estar específico e limitado, porém “adequado” e, portanto, melhor aceito pelo sistema (FREIRE, 1987).

Esta compreensão se realiza também no Ensino Superior, no âmbito do qual lançamos olhar à Licenciatura em Matemática. Nela, o acadêmico, de imediato, depara-se com as tradicionais formas de abordagem da Matemática, com suas fórmulas, axiomas e teorias, mediante instrução de um ensino ainda dogmático.

A Matemática, ela mesma, é formal e de inegável rigor. No entanto, há de se pensar esta ciência em situação de ensino e de aprendizagem, que solicita abordagens que muitas vezes se distanciam de qualquer caracterização que as possa definir como rigorosas, pelo contrário, buscam por ser entendidas como dinâmicas, abertas à diversidade de ideias, mas não deixando de se preocupar em como lidar com essa diversidade, para que a aprendizagem dos temas em Matemática possa se dar respeitando sua formalidade e rigor.

Nessa direção, há pesquisas que sugerem maior diversidade e dinamismo no trabalho com temas e problemas matemáticos do ensino superior. Sugere-se pensar o aluno em sua totalidade, constituída por conhecimentos que nascem das relações humanas em seu mundo circundante, seu ambiente sociocultural. Portanto, tais estudos propõem que se valorize o conhecimento da vida cotidiana dos acadêmicos, indo além do ambiente normativo do ensino, levando a Matemática para ações do cotidiano, bem como trazendo o cotidiano sob olhar matemático (D’AMBRÓSIO, 2008; DOMITE, 2004; COSTA et al., 2014).

D’Ambrósio (1994) defende um “currículo dinâmico”, ou seja, que não pressuponha e fixe parâmetros universais para o ensino. Nesse ser dinâmico constituem-se currículos que melhor se “adequem” ao contexto natural, social e cultural do aluno, trazendo junto aos conteúdos matemáticos as possibilidades apresentadas por esse contexto. Os componentes básicos da proposta de currículo de D’Ambrósio (1994) são: instrumentalização, conteúdo e socialização. A instrumentalização diz da bagagem conceitual, cultural e social que o aluno traz consigo aos momentos de aprendizagem dos conteúdos. Bagagem essa, que deve ser considerada pelo professor ao guiar-se por esse currículo. A socialização dá-se no cerne do compromisso maior da educação, que é estimular a ação comum, como por exemplo, a de aprender de modo cooperativo, no entrelaçamento dos instrumentais de cada indivíduo. Para D’Ambrósio (1994), é essa ação comum que gera culturas e vida social.

Assim, é importante considerar a necessidade de uma estruturação curricular voltada para um modo mais “humanístico" na formação de professores, na qual se possibilite um equilíbrio na relação professor-aluno. Na esteira desta compreensão, Domite (2004, p. 426) propõe que o currículo de formação de professores de matemática seja uma “imersão em Etnomatemática, visando à possibilidade de o Professor atenuar a tensão que confronta os diferentes tipos de saberes, melhorando o ensino e, ao mesmo tempo, minimizando essa dificuldade de aprender”.

O currículo de formação de professores de matemática com Etnomatemática, portanto, pensa o ensino e a aprendizagem para além da formalidade matemática, considerando-a, mas também reafirmando o fazer e linguagem produzidos pelos alunos em seu ambiente sociocultural, conhecendo e se valendo dos modos pelos quais eles geram e organizam seu mundo circundante, assumindo o seu direito e capacidade de transformá-lo.

Com a Etnomatemática entendemos que “encontramos constantemente situações nas quais diferentes inclinações e diferentes decisões/escolhas se manifestam, todas elas condicionadas por valores”, (COSTA; OLIVEIRA, 2019, p. 145), que dizem da formação do sujeito, desenvolvendo habilidades e pensamento crítico frente a questões que são comuns ao contexto social dos alunos, como por exemplo: acessibilidade, saneamento, desigualdade, democracia. Tal formação, conforme apontam Costa e Oliveira (2019, p. 146), solicita uma postura de educador etnomatemático para “fazer emergir modos de raciocinar, medir, contar, tirar conclusões, dos educandos, assim como procurar entender como a cultura se desenvolve e potencializa as questões de aprendizagem”, projetando esse aprender ao seu modo de ser e estar no mundo, assumindo sua identidade, criando e reforçando argumentações, se posicionando.

Dada a relevância da Etnomatemática e dela compondo a formação de professores de matemática, entendemos ser relevante buscar por como ela se faz presente nos currículos de formação desses professores. Esta é a proposta desta pesquisa.

4. Metodologia e procedimentos de pesquisa

Buscando compreender como a Etnomatemática se faz presente nos currículos de formação de professores de matemática do Brasil, foi realizada uma pesquisa qualitativa, de cunho documental, focando o PPC de cursos de Licenciatura em Matemática de uma universidade federal de cada estado brasileiro. Ainda, buscando por uma contextualização regional, analisa-se o PPC da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (UEMASUL), por ser ela instituição sede deste estudo, mas principalmente por estar no Maranhão um grande número de comunidades quilombolas e indígenas. Dito isto, questiona-se: a UEMASUL e as universidades federais aqui consideradas pensam a formação para/com estas comunidades?

Os dados construídos foram interpretados segundo os pressupostos da Análise de Conteúdo entendida como “[...] uma metodologia de pesquisa usada para descrever e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos e textos” (MORAES, 1999, p. 2). Esta metodologia é constituída pelas seguintes etapas: preparação das informações, unitarização ou transformação do conteúdo em unidades, categorização ou classificação das unidades em categorias, descrição e interpretação.

5. Descrições e análise dos dados de pesquisa

A busca pelos PPC se deu nos sites de universidades federais de cada estado, dos polos que possuem a Licenciatura em Matemática. Destacamos para análise uma universidade de cada estado. Portanto, analisamos 28 projetos, considerando 27 universidades federais e a UEMASUL, no âmbito dos quais pesquisamos pelas referências feitas à Etnomatemática. Vale frisar que a busca dos PPC se deu inicialmente nos cursos de campus de universidades das capitais. Ao constatar que algumas destas universidades não têm disponível no site o PPC, realizamos a busca no site de outros de seus campus. Persistindo a ausência de PPC no site, realizamos a busca no site de outras universidades federais, desde que estivessem no mesmo estado daquela na qual a procura não logrou êxito. A Tabela 1, abaixo, expõe essas universidades bem como a quantidade de referências feitas à temática.

Registra-se que o ano de realização desta pesquisa é 2021, e que os PPC analisados são os que estão atualmente disponibilizados no site de cada universidade, compondo os documentos vigentes referentes à formação de professores de Matemática.

Tabela 1
Relação de universidades às quais se avaliou o PPC
Estado Universidade Campus Referência(s) à Etnomatemática
Acre UFAC Rio Branco 1
Alagoas UFAL Arapiraca 0
Amapá UNIFAP Macapá 30
Amazonas UFAM Itacoatiara 0
Bahia UFRB Cruz das Almas 2
Ceará UFC Fortaleza 0
Distrito Federal UNB Distrito Federal 0
Espírito Santo UFES São Mateus 6
Goiás UFG Catalão 3
Maranhão UFMA São Luiz 0
Mato Grosso UFMT Cuiabá 3
Mato Grosso do sul UFMS Paranaíba 14
Minas Gerais UFJF Juiz de Fora 6
Pará UFPA Bragança 0
Paraíba UFPB João Pessoa 0
Paraná UFPR Curitiba 0
Pernambuco UFPE Caruaru 1
Piauí UFPI Teresina 0
Rio de Janeiro UFRRJ Seropédica 1
Rio Grande do Norte UFRN Natal 0
Rio Grande do Sul UFRGS Porto Alegre 0
Rondônia UNIR Ji-paraná 10
Roraima UFRR Boa Vista 1
Santa Catarina UFSC Blumenau 6
São Paulo UFSCar São Carlos 4
Sergipe UFS Arauá 0
Tocantins UFT Araguaína 5
Maranhão UEMASUL Imperatriz 12
os autores

Uma vez realizada a pesquisa exploratória, que nos legou a quantidade de citações à Etnomatemática, retomamos cada PPC, analisando o diálogo que circunda e que constitui a citação à temática, sempre questionando: como a Etnomatemática se faz presente?

A explicitação que se realiza a partir do próximo parágrafo é mais descritiva, visando apresentar, mediante nossa interpretação, os modos pelos quais cada PPC aborda a Etnomatemática. Cada modo, no âmbito da Análise de Discursos, entendemos como unidade significativa à compreensão da pergunta de pesquisa (MORAES, 1999). Cada unidade, apresentada a seguir, destacamos de negrito e itálico, nomeando-a como AE1, AE2, AE3, e assim por diante, sendo AE a abreviação de Abordagem à Etnomatemática.

A começar pelo PPC da UFAC, campus Rio Branco, encontramos apenas uma menção, que diz respeito a uma referência bibliográfica, na modalidade complementar, da disciplina Prática de Ensino de Matemática IV. Com isso, entendemos que a Etnomatemática se apresenta como fundamentação complementar a uma disciplina cujo foco é a prática de sala de aula (AE1).

No PPC da UNIFAP, campus Macapá, a palavra Etnomatemática aparece trinta (30) vezes. Numa delas se encontra como um componente curricular do curso, constituindo a disciplina Educação Ambiental e Etnomatemática. Desse modo, a Etnomatemática se consolida como uma disciplina na formação de professores, estando associada à educação ambiental (AE2). O termo aparece outras vezes, compondo a Referência Básica da disciplina.

Ao nos voltarmos ao PPC da UFRB, encontramos duas (2) referências à Etnomatemática, ambas na ementa da disciplina Educação Matemática II, sob justificativa de apresentar compreensões atuais da Educação Matemática em relação às pesquisas sobre a Modelagem Matemática e Etnomatemática. Assim, aEtnomatemática compõe o currículo de formação de professores como sendo uma das temáticas a serem discutidas numa disciplina cujo olhar se volta ao campo de ensino e pesquisa da Educação Matemática (AE3).

O PPC da licenciatura da UFES, campus São Mateus, faz referência à Etnomatemática seis (6) vezes, estando presentes na ementa de três disciplinas, quais sejam: Projeto de Nivelamento de Matemática no Ensino Fundamental; Seminários Interdisciplinares; Instrumentação para o Ensino da Matemática. Na primeira, a Etnomatemática é apontada como sugestão e caminho para atuação do professor em sala de aula. Na segunda, a Etnomatemática se mostra como um dos temas de seminário que será oferecido no semestre. Na terceira, a Etnomatemática está incluída nas atividades práticas. Portanto, no referido PPC a Etnomatemática se consolida como tema a ser discutido em disciplinas (AE4); como instrumento pedagógico na formação de professores de matemática (AE5) e como fundamentação para exercício da docência (AE6).

Quando pesquisada a palavra Etnomatemática no PPC da UFG, de Catalão, foram encontradas três (3) referências, sendo todas elas na ementa da disciplina Educação Matemática II; uma se referindo ao tema a ser discutido e duas referentes à bibliografia da disciplina. A discussão proposta na ementa defende a Etnomatemática como um programa de pesquisa, dividido em dimensões: conceitual, histórica, cognitiva, epistemológica, política e educacional (AE7).

A Licenciatura em Matemática em Caruaru, da UFPE, ao fazer uma (1) única referência à Etnomatemática, nos tópicos de fundamentação do PPC, propõe uma formação de professores voltada à realidade da sociedade local, nacional e global, sendo a Etnomatemática transversal às discussões sobre temáticas atuais correlatas aos diferentes contextos socioculturais (AE8).

Assim como em casos anteriores, a Etnomatemática é posta no PPC da Licenciatura em Matemática da UFMT, campus Cuiabá, como tema da ementa de uma disciplina voltada à Educação Matemática, acompanhada de uma bibliografia correspondente (AE9). A disciplina é Tendências em Educação Matemática. As três (3) vezes que o termo estudado aparece, dá-se na referida ementa e em sua bibliografia.

A UFMS, campus Paranaíba, em seu PPC do curso de Licenciatura em Matemática, faz referências à Etnomatemática quatorze (14) vezes, inicialmente numa explicitação teórica, apresentando concepções em Etnomatemática, dentre as quais as direcionadas ao Ensino Inclusivo, expondo que compreensões de matemática e de linguagem podem se diversificar quando focados grupos distintos de sujeitos aos quais se lança o olhar da inclusão (alunos deficientes, surdos, cegos, idosos, etc.). Tal explicitação é argumento para criação de uma disciplina, a Educação Etnomatemática. Essa disciplina é posta como complementar ao curso, na modalidade optativa. Assim, entendemos que a Etnomatemática também se apresenta como complementar e opcional à formação docente (AE10).

O PPC da UFRRJ, campus Seropédica, faz uma (1) menção à Etnomatemática, no âmbito da bibliografia básica da ementa da disciplina Ensino de Matemática: Aprendizagem e Novas Tecnologias, ministrada no 1° período. Mais uma vez, a Etnomatemática se mostra neste estudo como uma das fundamentações teóricas de uma disciplina de Ensino (AE11).

Diferentemente de alguns PPC estudados, o da UNIR, de Ji-paraná, não apresenta uma disciplina ou bibliografia que tenha como solo a Etnomatemática, mas em sua fundamentação, no que tangencia as dez (10) citações à Etnomatemática, traz uma teorização sobre a temática, reservando um tópico só para a mesma. Nas citações ao termo, defende-se dois olhares na formação de professores: a Etnomatemática como programa de pesquisa e ela como prática sobre a qual se pode pensar as realizações de sala de aula (AE12).

Numa abordagem diferente das aqui já citadas, o PPC da Licenciatura em Matemática da UFRR, de Boa Vista, refere-se à Etnomatemática como uma abordagem teórico-metodológico (AE13), que no referido curso deve ser aplicada às didáticas do Laboratório de Educação Matemática (LEM), objetivando aperfeiçoar a prática docente no ensino e na aprendizagem de Matemática.

O PPC da UFSC, campus Blumenau, faz seis (6) referências à Etnomatemática, com as quais se argumenta que ela é uma “tendência” com papel fundamental na problematização das questões étnico-raciais (AE14), pois busca suscitar reflexões sobre temas e problemas comuns aos diferentes contextos socioculturais, mesmo quando esse traz questões muitas vezes globais. A palavra Etnomatemática também compõe a bibliografia complementar do Estágio Supervisionado I e Estágio Supervisionado II.

A Etnomatemática é descrita como uma abordagem multidisciplinar (AE15) na ementa da disciplina Metodologia e Prática do Ensina de Matemática na Educação Básica 1, do curso Licenciatura em Matemática da UFSCar. No PPC deste curso a palavra Etnomatemática aparece quatro (4) vezes, sendo três delas na ementa da disciplina acima mencionada (tema da disciplina e título de referência bibliográfica).

No que diz respeito às universidades federais, o último PPC avaliado foi o da Licenciatura da UFT, campus Araguaína. Nele, a Etnomatemática é referenciada cinco (5) vezes, sendo destacada como um tema a ser estudado na disciplina Tendências em Educação Matemática, bem como se apresenta nas referências bibliográficas da disciplina Educação Indígena como um componente curricular optativo. Aqui, a Etnomatemática se mostra, tal como em outros casos citados, como um tema da Educação Matemática a ser estudado em uma disciplina voltada ao Ensino (AE16). Ainda, se apresenta como fundamentação teórica para uma disciplina que tem como foco uma comunidade específica, com suas características naturais, sociais e culturais (AE17).

A busca que se realiza para este artigo é de cunho nacional, voltada aos estados brasileiros. No entanto, a própria temática, a Etnomatemática, nos move a realizar a mesma interrogação que sustenta esta pesquisa também num contexto local, no âmbito do qual os pesquisadores que aqui escrevem estão inseridos. Portanto, direciona-se o olhar também ao PPC do curso de Licenciatura em Matemática da UEMASUL. Esse PPC faz doze (12) referências à Etnomatemática, abarcando teoria, prática e metodologia. Ela é descrita como uma filosofia sobre a qual se pensa e se realiza todo o curso de formação do professor de matemática, sendo, portanto, transversal, interdisciplinar e transdisciplinar (AE18). Para além dessa compreensão o PPC faz a articulação entre a Etnomatemática e o contexto sociocultural ao qual a Universidade está inserida (AE19), denominado Região Tocantina do Maranhão, enfatizando a necessidade de se pensar uma formação para/com os povos indígenas, quilombolas e sertanejos que vivenciam o referido contexto. Destaca-se que a referência também se realiza no tópico de Metodologia do curso, reafirmando que a metodologia não deve ser única, fechada em si ou irredutível, tendo em vista a compreensão da matemática e da sala de aula como multiplicidade (AE20), ao se considerar cada aluno e sua realidade sociocultural. Balizado pelo aporte teórico e metodológico descrito, o PPC justifica e traz a Etnomatemática também como tema de duas disciplinas, quais sejam: Educação Matemática: pesquisa e sala de aula e Laboratório de Ensino de matemática. Em ambas se propõe a Etnomatemática como compreensão filosófica, metodológica e prática.

Vale ressaltar que doze (12) dos vinte e oito (28) PPC analisados não fazem nenhuma referência à Etnomatemática, o que corresponde a quase 43% dos PPC. Quando interrogamos pela presença, a ausência se mostra como uma de suas faces. Então, discutir a ausência também se faz significativo. Assim um modo de mostrar-se a Etnomatemática é por sua ausência no currículo de formação do professor de Matemática (AE21), o que nos leva a interrogar: que matemática e que formação de professor de matemática se realiza nos cursos que não trazem a Etnomatemática ao processo formativo? Esta é uma interrogação a qual, embora tangenciada, não se adentra neste estudo. É uma compreensão que pode ser buscada em uma pesquisa posterior a esta.

A descrição acima realizada nos legou alguns modos pelos quais a Etnomatemática se evidencia em currículos de formação de professores de matemática. Ao todo, fizemos vinte e um (21) destaques correlatos a esses modos de evidenciar-se. Um retorno a cada um deles nos fez perceber que alguns convergem, outros se repetem. Mediante tal constatação, foi possível realizar um movimento de convergência, correlato ao processo da Análise de Conteúdo aqui proposta, que nos proporcionou ideias mais abrangentes (categorias) que entendemos serem nucleares à compreensão da pergunta de pesquisa. Foram constituídas três (3) ideias, que chamamos de Núcleos de Compreensão (NC). Esse movimento é expresso na Tabela 2, que segue.

Tabela 2
Movimento de constituição dos Núcleos de Compreensão
Abordagens à Etnomatemática Núcleos de Compreensão
AE1 - AE2 - AE3 - E4 - AE10 - AE11- AE16 AE17 - AE19 NC1 - Etnomatemática como disciplina curricular ou como tema de uma disciplina.
AE5 - AE6 - AE7 - AE8 - AE12 - AE13 - AE14 AE15 - AE18 - AE20 NC2 - Etnomatemática como fundamentação teórica e prática ao processo de formação do professor de matemática.
AE21 NC3 – A ausência da Etnomatemática no currículo de formação de professores de Matemática.
Os autores

A Tabela 2 expõe que os dados com os quais podemos tecer compreensões sobre o fenômeno investigado se mostram junto ao movimento de pesquisa, as Abordagens e os NC não são prévios ao estudo, eles vão sendo articulados no processo de leitura, síntese e compreensão do pesquisador que intencionalmente se põe em ato de interrogar, e se está a interrogar, se posiciona como alguém que busca conhecer. Com isso, entendemos que, dado o rigor da análise, uma asserção articulada sobre cada um dos NC, compreendida como a fase descritiva e interpretativa da Análise de Conteúdo (MORAES, 1999), é um modo pelo qual podemos apresentar ao leitor o compreendido quando focada a pergunta norteadora deste estudo.

Iniciamos as discussões pelo Núcleo de Compreensão 1, trazendo as abordagens que se apresentaram, discutindo-as e articulando-as, as quais são novamente postas em itálico e negrito.

- NC1 - Etnomatemática como disciplina curricular ou como tema de uma disciplina

O estudo dos PPC dos cursos de Licenciatura em Matemática nos legou diferentes abordagens à Etnomatemática. Com maior frequência destaca-se que a Etnomatemática compõe o currículo de formação de professores como sendo uma das temáticas a serem discutidas numa disciplina cujo olhar se volta ao campo de ensino e pesquisa da Educação Matemática. Nessas disciplinas, a Etnomatemática se consolida como tema a ser discutido dentre outros a serem estudados, como: História da Matemática; Filosofia da Educação Matemática; Educação Matemática Crítica; Resolução de Problemas; Modelagem e Matemática; Tecnologias da Informação e da Comunicação, Formação de Professores de Matemática. A união dessas temáticas entendemos compor uma disciplina de Educação Matemática.

No entanto, a Etnomatemática se mostra também como uma das fundamentações teóricas de uma disciplina de Ensino, que não necessariamente aborda as temáticas acima postas, não tematizam a área Educação Matemática. É o caso da disciplina Ensino de Matemática: Aprendizagem e Novas Tecnologias, na qual a Etnomatemática aparece apenas na bibliografia, o que permite pensar sua presença como fundamentação das práticas, porém, tal apresentação não nos permite compreensões de como essa fundamentação se realiza, há carência de uma explicitação.

No entanto, compreendemos que como fundamentação teórica de uma disciplina de um curso de formação de professores de Matemática, a Etnomatemática permite aos futuros professores a compreensão de que há matemáticas para além da matemática formal, que nascem em diferentes contextos socioculturais e, portanto, esses contextos não devem ser marginalizados ou excluídos no exercício da docência.

A dificuldade encontrada para interpretar como um currículo pensa e propõe a Etnomatemática ao apresentá-la apenas numa referência bibliográfica se amplia quando essa referência aparece como fundamentação complementar a uma disciplina cujo foco é a prática de sala de aula. Entende-se que as Referências Complementares são importantes, mas não mais do que aquelas consideradas Referências Básicas, às quais alunos e professores mais recorrem. Da mesma forma, a ausência de uma explicitação não nos permite afirmar como pensam a Etnomatemática os cursos que desse modo a insere.

Entretanto, entendemos que um currículo que compreenda a relevância da Etnomatemática não deveria deixar seu leitor à deriva numa interpretação, num vazio de compreensões. Com a Etnomatemática nas referências bibliográficas subentende-se que gestores e/ou professores a conhecem. A problemática que se impõem é que sua presença de tal modo no currículo também carrega esse caráter de ser subentendida, de importância subentendida. Mas, aqui firmamos nossa compreensão de que a Etnomatemática é central na formação de professores de matemática, e, portanto, solicita uma implementação formalizada, uma institucionalização, tal como propõe fazer um currículo de formação, não deixando, portanto, sua relevância dada à interpretação, mas de antemão a explicitando, enfatizando suas contribuições à formação, ao ensino e à aprendizagem.

Uma das interpretações possíveis nas lacunas assim deixadas pelos currículos diz respeito à marginalização da Etnomatemática, quando ela se apresenta apenas como complementar e opcional à formação docente. Essa interpretação é uma possibilidade, quando se faz referência à Etnomatemática apenas numa bibliografia complementar de uma disciplina, mas também quando ela se apresenta como uma disciplina curricular, mas na modalidade optativa, ou seja, de acesso apenas àqueles alunos que tenham interesse em conhecê-la. Porém, em outro olhar, o caráter complementar se faz importante num contexto de aprofundamento no tema, quando este não for possível junto às disciplinas obrigatórias. É o caso da proposta da UFMS, que apresenta como optativa a disciplina Educação Etnomatemática, tendo no currículo regular disciplinas pedagógicas que discutem o tema.

O estudo dos PPC também expõe que a Etnomatemática se consolida como uma disciplina na formação de professores, estando associada à educação ambiental, sendo essa disciplina presente no currículo regular, enfatizando a relevância da Etnomatemática e seu caráter transdisciplinar, ao ser solo para se discutir o meio ambiente, as ações humanas e implicações delas nesse meio. Compreende-se nessa perspectiva as relações socioculturais que em sua diversidade produzem modos de lidar com a natureza, seja com objetivos de preservação, de consumo ou econômicos. Desse modo, pode-se discutir no âmbito da perspectiva etnomatemática as produções de conhecimentos atreladas à natureza ao se considerar grupos com culturas distintas, como por exemplo: ambientalistas, indígenas, feirantes, agricultores, dentre outros.

No pensar correlato à diversidade de produção de conhecimentos matemáticos, dada a pluralidade dos ambientes socioculturais nos quais se desenvolvem, configura-se a disciplina Educação Indígena, da Licenciatura em Matemática da UFT, para a qual a Etnomatemática se apresenta como fundamentação teórica para uma disciplina que tem como foco uma comunidade específica, com suas características naturais, sociais e culturais. Esta disciplina é uma iniciativa que transcende a mera teorização sobre a preocupação com um ensino contextualizado. A UFT faz a articulação entre a Etnomatemática e o contexto sociocultural ao qual a Universidade está inserida (como é o caso de comunidades indígenas), pois ela pode receber alunos advindos das mesmas, ou pode estar formando professores que venham a atuar com essas comunidades.

O mesmo pode ser dito sobre a UEMASUL, que contempla o solo constituinte da universidade, reafirmando no currículo de formação de professores de matemática as manifestações culturais de Imperatriz - MA, uma cidade iniciada com aldeamentos religiosos, quilombolas e indígenas, e grupos sem-terra vindos dos mais diversos locais. Ao trazer essa constituição ao currículo, com disciplinas, fundamentação teórica e metodologia balizadas pela Etnomatemática, a UMESUL também mostra preocupar-se com os modos específicos de estudar, de compreender e de agir dentro do contexto natural e cultural dos indivíduos.

Desse modo faz-se significativo que a prática pedagógica permita conhecer as diferentes comunidades, para que a postura diante delas seja de respeito e de preservação dos conhecimentos ali produzidos, dentre os quais os etnomatemáticos.

- NC2 - Etnomatemática como fundamentação teórica, prática e metodológica ao processo de formação do professor de matemática

O NC1, ao focar a sala de aula de formação de professores, expõe a Etnomatemática como campo de ensino, que deve ser estudado e compreendido pelos graduandos, para que possam pensar e desenvolver práticas coerentes com esse campo quando forem lecionar. Tal compreensão se realiza também na vivência de uma prática pedagógica com Etnomatemática sobre a qual se pode pensar as realizações de sala de aula. Essa prática é proposta nos currículos analisados, quando expressam a Etnomatemática como instrumento pedagógico na formação de professores de matemática e como fundamentação para exercício da docência.

No âmbito da prática, a própria Etnomatemática, quando realizada em sala de aula, pode permitir aos graduandos vivenciarem uma pedagogia que considere, que reafirme e legitime os conhecimentos por eles produzidos, trazendo a matemática acadêmica como mais um conhecimento que venha a contribuir à formação de seu ser, como pessoa e como professor, portanto, não sendo ela inserida como conhecimento único e verdadeiro.

Quando a Etnomatemática é vivenciada como abordagem teórico-metodológica, o graduando pode projetar reflexivamente a sua sala de aula, com seus futuros alunos, indagando sobre como se dariam as relações e a aprendizagem nela, se o fundo metodológico de sua prática docente for o agora vivenciado por ele, o da Etnomatemática. Desse modo, a formação se dá numa sincronicidade, na qual o graduando vivencia a metodologia perspectivando como pode se valer dela futuramente. Tal sincronicidade é fundamental à formação do professor.

Agregando teoria e metodologia, os PPC analisados também apresentam a Etnomatemática como uma abordagem multidisciplinar. Essa compreensão se legitima nas já mencionadas disciplinas para as quais a Etnomatemática se apresenta como fundamentação, sendo elas de didática, de ensino, voltadas ao contexto ambiental, ao contexto indígena. Essa abrangência permite compreender que a Etnomatemática abraça diferentes áreas, quando se abre a elas como um solo de estudos e de compreensões.

É nesse entendimento, de ser a Etnomatemática uma abertura às áreas, aos pensamentos diversos, às diferentes compreensões, às etnomatemáticas, que reafirma-se que não se pode ter em sala de aula uma metodologia única, fechada em si ou irredutível, tendo em vista a compreensão da matemática e da sala de aula como multiplicidade. Nesse viés, o ensino é compreendido como uma ação dinâmica que flui junto às experiências vivenciadas, que ao se movimentar faz mover também os saberes e os modos pelos quais se possa conhecê-los. Esses diferentes saberes e experiências devem ser valorizados e discutidos, pois a formação do professor é constituída nesse amálgama de conhecimentos, crenças, intuições e cientificações em relação às matemáticas.

Para além de constituir-se como campo de ensino, a Etnomatemática também se apresenta na formação de professores como um programa de pesquisa dividido em dimensões: conceitual, histórica, cognitiva, epistemológica, política e educacional, tal como é proposto no PPC da UFG. Nessa perspectiva a Etnomatemática se apresenta como um solo com e sobre o qual pode-se desenvolver pesquisas, indo reflexivamente ao encontro de contextos socioculturais com suas especificidades, para indagar os modos pelos quais neles se realiza a produção de conhecimentos etnomatemáticos. Essa produção é correlata aos indivíduos e às relações interpessoais desses contextos, que constituem uma identidade, um modo de ser, que abarca as dimensões acima postas. Ou seja, as produções se realizam na historicidade de cada povo, nos conhecimentos por eles criados, desenvolvidos e levados às novas gerações pela cultura, que pode ser familiar, educacional e/ou política. A dimensão conceitual diz também de uma compreensão sobre o que é isso, a Etnomatemática, sem a qual o pesquisador não pode ir à campo focando como nele se expressam as outras dimensões. Assim, faz significativo à pesquisa em Etnomatemática considerar essas dimensões como dados do estudo.

Quando com uma postura etnomatemática se vai à campo de pesquisa, pode-se entender como ela é transversal às discussões sobre temáticas atuais correlatas aos diferentes contextos socioculturais, pois seu objetivo já leva a sala de aula e a escola ao mundo de realizações dos alunos, mundo esse que é social, cultural e histórico. Nessa direção, a Etnomatemática se mostra também, ao analisar os PPC, como uma “tendência” com papel fundamental na problematização das questões étnico-raciais. Questões raciais, assim como outras relacionadas à sociedade global, como inclusão, desigualdade, acessibilidade, são possíveis ao trabalho com Etnomatemática, especialmente por ela abrir um campo amplo de debate, que não se resume às matemáticas, pois o próprio olhar lançado a elas traz como fundo um solo cultural e social no qual se desenvolvem.

As compreensões até então articuladas, expondo as diferentes faces da Etnomatemática, permite, tal como realizado no PPC da UEMASUL, compreendê-la de modo mais amplo como uma filosofia sobre a qual se pensa e se realiza todo o curso de formação do professor de matemática. Nessa perspectiva, a ação da e com a Etnomatemática se configura como ato filosófico, pois ela abstém-se de compreensões predeterminadas para ir ao objeto de seu olhar deixando-o se mostrar, a seu modo, expondo suas faces, seu modo de ser e de estar. Assim, agir com a postura etnomatemática é realizar o primeiro ato filosófico, que consiste em um retorno “à subjetividade, sua inerência histórica, reencontrar os fenômenos, a camada de experiência viva através da qual primeiramente o outro e as coisas nos são dados, o sistema ‘Eu-outro-as coisas’ no estado nascente” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 90).

- NC3 – A ausência da Etnomatemática no currículo de formação de professores de Matemática

Entende-se que com maior frequência um modo de mostrar-se a Etnomatemática é por sua ausência no currículo de formação do professor de matemática, que pode dizer muito sobre a temática para a formação docente, talvez mais do que uma exposição direta.

Por exemplo, destacamos a ausência nos PPC da Licenciatura em Matemática dos campus anteriormente destacados, da UFAM, UFMA e UFPA, universidades dos estados: Amazonas, Maranhão e Pará, respectivamente, que possuem uma extensa diversidade cultural, social e ambiental. Dentre as diversas comunidades pode-se dizer das ribeirinhas, quilombolas e indígenas. A soma dessas comunidades, e de seus habitantes, nos referidos estados, certamente é maior do que a presença das mesmas na totalidade dos demais estados brasileiros. A pergunta que se impõe é: tais comunidades e seus habitantes são consideradas quando se realiza a formação de professores de matemática? Os currículos que formalizam essa formação pensam a universidade considerando o contexto que a circunda, que por sua vez constitui-se pelas comunidades aqui citadas?

Não é pela ausência do termo Etnomatemática nesses currículos, bem como em outros nove analisados, que podemos concluir a desconsideração ou marginalização dessas comunidades. Ainda pode haver uma fundamentação no âmbito da sociologia, da história, do meio ambiente, que traz ao debate e que pense uma formação de professores para/com essas comunidades. No entanto, há de se dizer que no âmbito da Educação Matemática, da formação de professores de matemática, já se faz amplamente discutida um campo de estudo e de pesquisa cujo olhar específico abarca essas comunidades, indagando pelos modos de produção de conhecimento que nelas se realizam. Esse campo é o dado pela Etnomatemática, cuja relevância teórica e prática aqui já foi fortemente discutida. Portanto, entende-se que se faz significativo levar a Etnomatemática a esses currículos.

Mesmo não estando curricularizada a Etnomatemática na formação de professores dessas universidades, também não podemos afirmar que em algum momento dessa formação a Etnomatemática não seja inserida. Isso, pois, ela pode ser discutida via iniciativas individuais ou de grupo(s) de professores, podendo materializar-se como projeto de Iniciação Científica, Projeto de Extensão, ou até mesmo em discussão de textos levados à sala de aula pelo professor, mesmo o tema não estando presente nas ementas.

6. Sintetizando o dito e tecendo outras compreensões

Quando aqui buscamos compreender como a Etnomatemática se faz presente nos currículos de formação de professores de matemática do Brasil, entendemos que tal presença se caracteriza de diferentes modos: como disciplina curricular ou como tema de uma disciplina; como fundamentação teórica e prática ao processo de formação do professor de matemática e como ausência. Constatamos que embora haja iniciativas que propõem a Etnomatemática nessa formação, a ausência ou a pouca explicitação da Etnomatemática são mais frequentes.

No âmbito desses modos de mostrar-se, muitos PPC trazem a Etnomatemática apenas em sua fundamentação teórica, afirmando a relevância da mesma à formação de professores. A presença assim realizada traz a interrogação se a Etnomatemática se expõe como mera estética curricular, já que nas disciplinas e metodologias ela não é contemplada.

Já a constatação da ausência da Etnomatemática formalizada nos currículos solicita, para compreensão, um estudo de campo, indo às universidades, e interrogando os motivos pelos quais essa ausência se realiza, tendo em vista que a Etnomatemática amplamente discutida pela academia (portanto não desconhecida no meio universitário da formação de professores de matemática), expondo especialmente a relevância de uma Educação Etnomatemática.

Mas, embora compreendamos que alguns currículos poderiam inserir, ou melhor articular a Etnomatemática, entendemos que mesmo sua menção, antes de mais nada, é uma reafirmação da Educação Matemática na formação de professores, que desde os primeiros esforços, nos mais de trinta anos de sua constituição no Brasil, tem focado essa formação. Portanto, a presença da Etnomatemática nos currículos corrobora os esforços dessa área. No entanto, nota-se ainda uma demanda pela presença da Etnomatemática nos currículos, especialmente se os resultados desta pesquisa se expandirem para um grupo maior de universidades, de licenciaturas em Matemática.

Dada a relevância da Etnomatemática, tal como aqui reafirmada, compreendemos que ela solicita uma institucionalização, fixando no currículo acadêmico das Licenciatura em Matemática sua presença teórica, prática e metodológica, de modo interdisciplinar e transdisciplinar, sob proposta de promover uma formação que reconheça os conhecimentos produzidos no cotidiano, respeitando as culturas, assim como tudo a sua volta, como parte do processo de aprendizagem. Tal institucionalização traria à formação docente o que agora são ideias e discussões relevantes.

7. Referência bibliográfica

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DOMITE, M. C. S. Da compreensão sobre formação de professores e professoras numa perspectiva etnomatemática. In: KNIJNIK, G., WANDERER, F. & OLIVEIRA, C. J. (Orgs.). Etnomatemática: currículo e formação de professores. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

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