Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


Formação inicial de professores de Matemática: um estudo de conceito sobre o Teorema Fundamental da Aritmética
Initial training of mathematics teachers: a concept study on the fundamental theorem of arithmetics
Educación inicial para profesores de matemáticas: un estudio de concepto sobre el teorema fundamental de la aritmética
Revista de Educação Matemática, vol.. 18, e021030, 2021
Sociedade Brasileira de Educação Matemática

Ensino de Matemática, Diversas Possibilidades

Revista de Educação Matemática
Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil
ISSN: 2526-9062
ISSN-e: 1676-8868
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 18, e021030, 2021

Recepção: 29 Dezembro 2020

Aprovação: 17 Junho 2021

Publicado: 20 Julho 2021

Copyright Revista de Educação Matemática 2021.

Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: O presente artigo tem como foco a abordagem do Teorema Fundamental da Aritmética na formação inicial de professores de matemática numa universidade pública do Rio de Janeiro. Trata-se de um estudo de caso, que se baseia no modelo de estudo de conceito (concept study). Segundo esse modelo, os professores compartilham de forma colaborativa experiências e conhecimentos com o objetivo de questionar e reconstruir seus próprios conhecimentos sobre os conceitos matemáticos e seu ensino. Realizamos o estudo de conceito em quatro oficinas que precederam o início das aulas de uma disciplina dedicada à Teoria Elementar dos Números e os estudantes matriculados foram os sujeitos desta pesquisa. Entre os resultados, destacamos o entendimento dos licenciandos sobre os conceitos de: múltiplo e fator e suas propriedades, critérios de divisibilidade, números primos e decomposição em fatores primos. Ao final, eles passaram a considerar as propriedades advindas dos conceitos de múltiplo e fator para justificar os critérios de divisibilidade e a fazer uso da decomposição em fatores primos para simplificar cálculos. Refletindo sobre o ensino, concluíram que o fato de decompor um número em fatores primos não é uma garantia de que os estudantes da Educação Básica façam uso dessa decomposição para obter os seus fatores, simplificar cálculos, encontrar o m.m.c. ou o m.d.c. entre números. A fim de se garantir a atuação consciente e não mecanizada dos estudantes nessas ações, há que se desenvolver um trabalho em sala de aula que explore progressivamente as estruturas multiplicativas, isto é, a multiplicação de números naturais, suas propriedades e representações.

Palavras-chave: Teorema Fundamental da Aritmética, Estudo de Conceito, Formação Inicial de Professores.

Abstract: This article focuses on the approach of the Fundamental Theorem of Arithmetic in the initial training of mathematics teachers in public university of Rio de Janeiro. It is a case study, which uses a concept study model (concept study). According to this model, teachers share experiences and learn collaboratively in order to question and rebuild their personal knowledge of mathematical concepts and their teaching. We conducted the concept study in four workshops that preceded the beginning of classes in a discipline dedicated to Elementary Theory of Numbers with the students enrolled to attend it. Among the results, we highlight the licensees' understanding of the multiple and factor concepts and their characteristics, we request divisibility, prime numbers and decomposition into prime factors. In the end, they considered the recommended properties of the multiple and factor concepts to justify the divisibility requirements and use the prime factor decomposition to simplify calculations. Reflecting on teaching, conclude that the fact of decomposing a number into prime factors is not a guarantee that basic education students will use this decomposition to obtain their factors, simplify calculations, find or m.m.c. or the m.d.c. between numbers. If you guarantee a conscious and non-mechanized performance of the students in these actions, he will develop a work in the classroom that progressively explores as multiplicative structures, that is, a multiplication of natural numbers, their properties and representations.

Keywords: Fundamental Theorem of Arithmetic, Concept Study, Initial Teacher Training.

Resumen: Este artículo se centra en el teorema fundamental de la aritmética en la formación inicial de profesores de matemáticas en una universidad pública de Río de Janeiro. Esta investigación es un estudio de caso, que se basa en un modelo de estudio de concepto (concept study). Según este modelo, los profesores comparten experiencias y aprenden en colaboración para cuestionar y reconstruir su conocimiento personal sobre conceptos matemáticos y la enseñanza de éstos. Llevamos a cabo el estudio conceptual en cuatro talleres que precedieron al comienzo de las clases en una disciplina dedicada a la Teoría Elemental de Números con los estudiantes inscritos para asistir. Entre los resultados, destacamos la comprensión de los participantes de los conceptos de factores y múltiples y sus características, critérios de divisibilidad, números primos y descomposición en factores primos. Al final, consideraron las propiedades recomendadas de los conceptos de factores múltiples para justificar los requisitos de divisibilidad y utilizar la descomposición de factores primos para simplificar los cálculos. Al reflexionar sobre la enseñanza, los participantes concluyeron que descomponer un número en factores primos no garantiza que los estudiantes de primaria usarán esta descomposición para obtener sus factores, simplificar los cálculos, encontrar o m.m.c. o el m.d.c. entre números. De modo que se posible garantizar un rendimiento consciente y no mecanizado de los estudiantes en estas acciones, desarrollarán un trabajo en el aula que explorará progresivamente como estructuras multiplicativas, es decir, una multiplicación de números naturales, sus propiedades y representaciones.

Palabras clave: Teorema Fundamental de Aritmética, Estudio de concepto, Formación inicial del profesorado.

1. Introdução

O presente artigo tem como objetivo descrever o estudo de conceito (concept study) voltado para o Teorema Fundamental da Aritmética (TFA) vivenciado por estudantes de um curso de formação inicial de professores de Matemática, isto é licenciandos em Matemática. Trata-se de um estudo de caso, baseado no modelo de estudo de conceito ou concept study (DAVIS, 2010). Segundo esse modelo, os professores compartilham experiências com o objetivo de questionar seus próprios conhecimentos sobre os conceitos matemáticos e seu ensino. Em nossa pesquisa, aplicamos o modelo na formação inicial de professores e buscamos desenvolver, analisar e avaliar uma proposta de estudo de conceito centrada no Teorema Fundamental da Aritmética. Tentamos identificar e compreender argumentos e procedimentos utilizados por um grupo de 12 estudantes de licenciatura em matemática, prestes a cursar a disciplina Álgebra I, que tem em sua ementa aspectos da Teoria Elementar dos Números, teoria essa que abarca o Teorema Fundamental da Aritmética. Procuramos criar ao longo dos encontros um cenário de aprendizagem onde privilegiamos a diversificação das situações em que tais conceitos estão envolvidos e o uso das várias simbologias que lhes são associadas, permitindo a vivência das quatro ênfases sugeridas por Davis (2010) e que retomaremos mais adiante.

Segundo Ribenboim (2001), o TFA garante que todo número natural maior do que um pode ser decomposto de maneira única em fatores primos e os conceitos ligados a ele, são: as definições de múltiplos e fatores de um número, a diferenciação entre primos e compostos e a decomposição de um número em fatores primos. A Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2019) orienta que, todos eles são parte do conteúdo programático de Matemática desde o 5º ano do Ensino Fundamental, sendo retomados nos anos subsequentes apenas com aumento gradual dos números cuja decomposição é solicitada aos estudantes. Assim, os futuros professores sujeitos dessa pesquisa participaram de uma formação envolvendo conceitos que frequentemente terão que ensinar em seu exercício profissional, sendo que muitos deles já os ensinam em aulas particulares ou nos estágios supervisionados.

Cabe mencionar ainda que os conceitos matemáticos envolvidos nessa pesquisa compõem a área da Matemática denominada Aritmética. Embora com o ensino previsto desde os Anos Iniciais, as pesquisas em Educação Matemática sinalizam a existência de problemas no ensino e na aprendizagem da Aritmética. Observamos um tratamento mecanizado, a partir de exercícios repetitivos e problemas idealizados. Em outras palavras, como Barbosa (2008) afirma, todas as possibilidades de abordagem dos conceitos ligados à aritmética são reduzidas ao ensino de algoritmos. Pouca atenção tem sido dispensada às reflexões sobre o funcionamento dos algoritmos e os estudantes não têm tido oportunidade de descobrir variações nos algoritmos que possam ser úteis para o desenvolvimento de habilidades de cálculo mental e estimativas. Lins e Gimenez (1997) já enfatizavam essa constatação ao afirmar que:

Os conceitos aritméticos usados na Educação Matemática têm correspondido a relações quantitativas sobre coleções de objetos. Tem-se esquecido frequentemente que a aritmética inclui também: a) representações e significações diversas (pontos de referência e núcleos, que ampliam a ideia simples do manipulativo); b) análise do porquê dos algoritmos e divisibilidade (elementos conceituais); c) uso adequado e racional de regras (técnicas, destrezas e habilidades); e d) descobertas ou “teoremas” (descobertas, elaboração de conjecturas e processos de raciocínios) (p. 33).

Atualmente, passados mais de vinte anos, tal afirmação continua pertinente para a Educação Básica brasileira. Assim, nossa pesquisa se justifica pela necessidade de revermos o ensino da aritmética e, consequentemente, pela necessidade de revisarmos a formação do professor que vai colocar em prática esse ensino. Entendemos que os resultados aqui apresentados contribuem, sobretudo, para a organização curricular dos cursos de licenciatura em matemática no que concerne à Teoria Elementar dos Números. Na próxima seção, apresentamos uma síntese de pesquisas realizadas com professores de matemática em formação inicial ou continuada que revelam aspectos relacionados à aritmética que precisam ser abordados ou cuja abordagem precisa ser revista imediatamente nos cursos de formação. Na sequência, descrevemos teoricamente o professor que pretendemos formar e o método que empregamos na pesquisa. Por fim, fazemos a análise dos resultados e tecemos nossas considerações mais gerais.

2. A Aritmética na Educação Básica e nas formações de professores

Nos últimos anos o número de pesquisadores brasileiros e internacionais que têm se interessado pelo ensino da aritmética vem aumentando, no entanto, selecionamos para apresentar nesta sessão, aqueles que julgamos mais relevantes para nossa pesquisa, uma vez que se debruçam sobre os conceitos relacionados ao TFA que priorizamos nas oficinas com os estudantes de licenciatura.

Coelho, Machado e Maranhão (2005) investigaram a compreensão do TFA, por professores de Matemática em curso de formação continuada e estudantes de 8ª série do Ensino Fundamental de São Paulo. Buscaram responder se há diferença significativa na compreensão do TFA entre os dois grupos estudados e nos recursos utilizados para resolver as situações proposta. Concluíram que, comparativamente, tais diferenças existem e que também “existem cursos voltados para estudantes brasileiros nos quais a compreensão conceitual é enfatizada” (ibid, 2005, p. 11-12). Mas, alertam que “essa abordagem pode ser perturbada por um ensino prévio muito calcado em algoritmos” (ibid, 2005, p. 12). Voltando-se para o grupo de professores, as autoras perceberam que, “apesar de ter havido ênfase na compreensão conceitual durante a formação mais recente dos professores no curso de Pós-Graduação, esse esforço pode ter sido prejudicado por não ter abarcado todo o ensino recebido, sendo que ainda prevaleceram os hábitos constituídos na formação em longo prazo” (ibid, 2005, p. 12). Tendo em vista que a formação em longo prazo a que Coelho, Machado e Maranhão (2005) se referiram corresponde, inclusive, à formação nos anos iniciais da educação básica.

Barbosa (2008) realizou uma pesquisa que teve como objetivo desenvolver, analisar e avaliar uma proposta de ensino centrada nos principais conceitos ligados ao TFA. A referida autora buscou identificar e compreender argumentos e procedimentos utilizados por um grupo de 22 estudantes do sexto ano do Ensino Fundamental ao trabalharem com situações-problema e atividades lúdicas que envolvem tais conceitos. Fundamentada pela Teoria dos Campos Conceituais, a pesquisa permitiu concluir que os estudantes desenvolvem esquemas próprios para lidar com os conceitos em construção. Nesse sentido, uma série de conceitos matemáticos está presente, ainda que implicitamente, em suas ações. É função do professor criar condições que favoreçam aos estudantes explicitá-los.

Esses resultados, por sua vez, nos sinalizam que é possível um ensino significativo sobre o TFA e seus conceitos associados desde os anos iniciais, contrariando as práticas centradas em algoritmos e exercícios mecanizados. E, nessa direção, questionamos como deve ser a formação inicial de professores para que eles implementem ações como as propostas por Barbosa (2008) na educação básica. Fomos em busca de pesquisas que enfatizam os conhecimentos de professores e futuros professores sobre os conceitos matemáticos em questão. Procuramos também aquelas que privilegiam práticas docentes relacionadas a eles na licenciatura em matemática. De acordo com a especificidade do nosso interesse, encontramos suporte em pesquisas internacionais.

Internacionalmente, vimos que as pesquisas sobre o ensino e a aprendizagem da aritmética também conduzem a propostas de reformulação de seu ensino. Campbell (2002) investiga as habilidades dos professores em formação para pensar num nível mais abstrato a divisão aritmética. Em outras palavras, investiga a compreensão desses professores sobre conceitos, procedimentos e termos pertencentes ao algoritmo da divisão, teorema fundamental da teoria dos números, que define a divisão com números inteiros. Para tanto, descreve, por meio de uma perspectiva empírica, a variedade de fenômenos linguísticos, processuais e conceituais associados à compreensão dos professores sobre divisão, usando tarefas de problemas abstratos envolvendo a decomposição em fatores primos e calculadoras. Os resultados obtidos abrangeram desde abordagens processuais da divisão, quer usando uma calculadora quer efetuando divisão longa, até abordagens mais conceituais que resultaram em respostas apropriadas com pouco ou nenhum cálculo. Entre esses extremos houve variações sugerindo dificuldades na compreensão de divisão de números inteiros e divisão de números racionais. Por meio de entrevistas, os participantes confrontaram obstáculos que foram conduzidos para uma variedade de inferências envolvendo conceitos associados à divisão.

Colocando em evidência os aspectos relacionados à divisão e à multiplicação na decomposição em fatores primos, Brown, Thomas e Tolias (2002) procuraram enfocar a habilidade de licenciandos em matemática para orientar suas ações aritméticas e raciocínios por meio da compreensão da estrutura multiplicativa sobre o conjunto dos números naturais. Usando as palavras deles, estavam interessados “na habilidade individual de progredir das respostas nos caminhos que são primeiramente ações orientadas, com pouca consciência dos conceitos matemáticos subjacentes, para respostas com raciocínio inferencial baseado explicitamente na compreensão das operações e propriedades matemáticas” (p. 43). Os autores concluíram nessa pesquisa que alguns estudantes frequentemente lidam com tarefas da teoria dos números sem usar conscientemente seus conhecimentos da estrutura multiplicativa. Eles escolhem executar computações por meio de técnicas enquanto que raciocinar sobre as computações bastaria. As respostas iniciais tendem a ser para calcular em vez de antecipar, inferir ou predizer. A natureza automática destas respostas apresenta obstáculos para a reflexão. Este quadro, entretanto, segundo os autores, vai sendo revertido progressivamente, à medida que os estudantes internalizavam as ações relacionadas à divisibilidade. As inferências ocorrem a partir da reflexão sobre os resultados da coordenação dos processos, sublinhando as propriedades comutativa e associativa da multiplicação, com o processo de concepção da decomposição em fatores primos.

É importante destacar que muitos professores hoje se encontram situados de forma embaraçosa entre as suas experiências como estudantes da escola tradicional e as necessidades de reformas no ensino. Eles precisam ser levados a entrar num mundo diferente daqueles que experimentaram como estudantes da educação básica, em que estão sendo redefinidas as noções do que é a Matemática e do que vem a ser o seu ensino. Por isso, a formação inicial de professores deve ser pensada de modo a causar impacto sobre as vivências dos primeiros anos de escolaridade. É necessário integrar as áreas dos conteúdos e processos. Teppo (2002) afirma que processos são entendidos enquanto enfocando conteúdos e conteúdos entendidos com ênfase nos processos e, no artigo, cujo título pode ser traduzido “Integrando conteúdos e processos na aula de Matemática”, ela descreve uma atividade de sala de aula baseada nas ideias da teoria dos números que integra conteúdo e processo. A autora propõe para uma turma de professores em treinamento uma atividade que provê a introdução da Teoria dos Números por meio da investigação de modelos para números naturais que têm exatamente 2, 3, 4 ou 5 divisores. A investigação inclui o trabalho com os conceitos de fatores, divisibilidade e números primos e compostos. A análise dos dados mostra que é possível que os estudantes e o professor se envolvam num processo matemático de grande extensão, incluindo organizar informação, fazer generalizações a partir de padrões numéricos, fazer e testar conjecturas e formar abstrações. Por meio desses processos, os estudantes trabalharam com os conceitos de decomposição em fatores primos, divisibilidade e números primos e compostos dentro da estrutura multiplicativa subjacente. Representações verbais, escritas e simbólicas contribuíram significativamente para que os estudantes as articulassem e refletissem sobre as ideias discutidas.

Em linhas gerais, com base nas pesquisas citadas, compreendemos que, do mesmo modo que os professores da educação básica se encontram desafiados a promover um ensino diferente do que receberam nesse nível, nós, professores do ensino superior, atuantes nos cursos de licenciatura em matemática, estamos provocados a romper com as aulas tradicionais muito frequentes nesse nível de ensino, em que os estudantes permanecem com uma postura passiva, muitas vezes temerosos de exporem seus pensamentos, e promover uma formação reflexiva, que integre conteúdos, processos e práticas de ensino. Para implementação, no entanto, precisamos buscar suporte na reflexão sobre formação de professores e saberes docentes, o que fazemos na próxima seção.

3. A formação de professores e os saberes docentes

As discussões atuais sobre a formação de professores situam-se em um movimento, iniciado há cerca de três décadas, que busca a profissionalização do ofício de ensino. Segundo Brito e Alves (2008, p. 27), tal profissionalização pressupõe a definição da natureza dos saberes que embasam a prática docente.

Sobre o saber docente, Tardif (2014, p. 36) o define como “um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e existenciais”. Os saberes da formação profissional são aqueles provenientes das instituições formativas. É nesses espaços que o professor tem contato com as ciências da educação e com os saberes pedagógicos. Ou seja, os saberes profissionais têm como finalidade a formação intelectual, científica e a constituição de um arcabouço de elementos que vão auxiliá-lo em sua prática pedagógica. Já os saberes curriculares referem-se aos “programas escolares (objetivos, conteúdos, métodos)” (ibid, 2014, p. 38) de que o professor precisa se apropriar para implementar na sua atividade educativa de forma crítica e reflexiva, enquanto os saberes disciplinares correspondem aos diversos campos do conhecimento à disposição da sociedade, que são oferecidos pelas instituições educacionais na forma de disciplinas, sendo a Matemática, um dos exemplos. Por fim, os saberes existenciais relacionam-se à prática habitual e ao conhecimento dos espaços onde estão inscritos. Esses saberes são gerados da experiência e são por ela legitimados, “incorporam-se à experiência individual e coletiva sob a forma de habitus e de habilidades, de saber-fazer e saber-ser” (TARDIF, 2014, p. 39).

Identificados os tipos de saber, é importante observar que Tardif (2014) não estabelece nenhuma espécie de hierarquização entre eles, uma vez que todos eles são contributos essenciais que compõem a prática do professor. Contudo, um dado relevante que ele verificou em suas pesquisas diz respeito às relações que os professores mantêm com esses saberes: eles, em geral, se enquadram na condição de portadores ou transmissores desses saberes, e não de produtores. Nesse sentido, Brito e Alves (2013) afirmam que há forte conexão entre as crenças e concepções e a prática, de modo que as crenças e concepções conduzem as ações educativas e são validadas pela prática, assim como a reflexão sobre a prática pode engendrar novas concepções ou reelaborar as existentes. E Nacarato, Mengali e Passos (2015) orientam que as instituições formativas devem elaborar estratégias para desconstruir esses saberes que foram adquiridos durante a escolarização.

À luz dessas ideias, vislumbramos que, ao longo de sua formação, o futuro professor de matemática se torne apto a planejar suas aulas, escolhendo os recursos didáticos mais adequados, valorizando aspectos culturais dos estudantes nas aulas e na organização curricular e reconhecendo as etapas da aprendizagem que eles estejam vivenciando. Nos cursos de licenciatura em matemática não pretendemos formar cientistas sociais, nem psicólogos, nem matemáticos, mas sim indivíduos capazes de pesquisar sobre sua prática, integrando essas três áreas do conhecimento e promovendo uma aprendizagem significativa da matemática. Os aspectos apontados estão em acordo com as ponderações realizadas por Serrazina (2003) quando sugere que os cursos de formação devem criar condições para que seu egresso, seja:

– um facilitador da aprendizagem significativa dos alunos, gerando conhecimento escolar, uma vez que são os alunos que aprendem e o professor deve ser capaz de criar as melhores condições para que isso aconteça;

– um investigador dos processos de ensino/aprendizagem que acontecem na sua turma, gerando assim conhecimento profissional;

– um gerador de conhecimento didático significativo ao investigar sobre os processos de desenvolvimento do currículo. (p. 69).

Tendo em vista a abordagem sobre formação de professores realizada pelos autores supracitados, levantamos a hipótese de que o estudo de conceito, proposto por Davis (2010) constitui-se não só um método para nossa pesquisa, mas também uma estratégia de formação de professores, que pode ser empregada, inclusive, na formação inicial dos professores, uma vez que os licenciandos, ainda que nos primeiros períodos da graduação, já possuem uma gama de saberes, como bem define Tardif (2014). Trazemos um detalhamento sobre o estudo de conceito na próxima seção.

4. Método e o estudo

O estudo de conceito estabeleceu as diretrizes do nosso trabalho. Segundo Rangel, Maculan e Giraldo (2015, p. 51), o estudo de conceito, ou concep study, é conhecido por ser “um estudo coletivo em que professores compartilham de forma colaborativa sua experiência e seu conhecimento com o objetivo de questionar e (re)elaborar seus próprios conhecimentos de matemática com vistas ao ensino”.

Explicando esse método, Davis e Renert (2014) esclarecem ainda que a análise de um estudo de conceito tem caráter interpretativo e prevê a identificação de ênfases no seu desenvolvimento, São elas: percepções, panorama, vínculos e inferências, que se encadeiam gradativamente de acordo com a reflexão realizada pelo grupo.

Davis e Renert (2014) acrescentam também que apenas a primeira, as percepções, pode ser considerada intencional. Ela é caracterizada pela produção de uma lista de itens que reúne as diversas imagens, metáforas, impressões que emergem da reflexão coletiva motivada por uma questão disparadora sobre o tema a ser estudado. As demais não podem ser previstas, pois dependem do andamento do estudo coletivo. A segunda ênfase – panorama - corresponde à associação de aspectos elementares do conceito em estudo que são estruturantes para a sua compreensão. Os vínculos priorizam as conexões matemáticas estabelecidas, não se limitando ao contexto do tema em estudo. E, na ênfase inferência, os professores iniciam um processo de busca de fundamentação das certezas que tinham acerca dos conceitos estudados e dos métodos de ensino relacionados a eles.

Devido ao número reduzido de participantes, doze estudantes de licenciatura em matemática prestes a cursar uma disciplina que se volta para a Teoria Elementar dos Números, nossa investigação foi um estudo de caso e as ênfases foram fundamentais não só para a formação desses licenciandos, mas nortearam a coleta e a análise dos dados ao longo de quatro oficinas realizadas antes do início da da disciplina. Cada oficina teve duas horas de duração, sendo a primeira delas precedida pela produção individual de um pequeno texto, que chamamos de diagnóstico inicial, em que cada estudante deveria registrar o que lhe vinha à mente quando ouvia a expressão decomposição em fatores primos. Cada oficina pode ser identificada com uma roda de conversa, constituída por reflexões coletivas balizadas pelas ênfases do concept study, de modo que cada uma abarcou uma ênfase. Todas as oficinas foram filmadas e transcritas. Houve também produção de um diário de bordo. A seguir registramos à descrição e análise dos dados.

5. Análise de dados

Para facilitar a compreensão do leitor, dividimos a descrição e análise dos dados nas quatro ênfases determinadas por Davis (2010; 2014) como constituintes de um estudo de conceitos, que, como já mencionamos, são: Percepções, Panorama, Vínculos e Inferências.

Percepções

Na ênfase Percepções, a questão disparadora foi: O que é importante quando um professor ensina sobre decomposição em fatores primos aos estudantes de sexto ano? A composição da lista de percepções, que marca o início do estudo, foi estabelecida a partir de uma longa discussão com os doze licenciandos. As participações deles nas discussões, por sua vez, foram fundamentadas nos pequenos textos que escreveram no diagnóstico inicial. A seguir foram transcritos os protocolos de três licenciandos, que os identificamos pelas letras A, B e C do alfabeto, com o objetivo de preservar as suas identidades e registrados na Figura 1: (temos três exemplos desses textos):


Figura 1
Diagnóstico inicial dos licenciandos: A, B e C
Fonte: A autora, 2018

Como pode ser observado, é consenso entre os textos (também o foi nos textos produzidos pelos outros nove sujeitos) a associação da decomposição em fatores primos à obtenção do mínimo múltiplo comum (m.m.c.) e do máximo divisor comum (m.d.c.). Além disso, todos destacam a necessidade de contextualização do assunto para os estudantes da educação básica. Cabe ressaltar que a contextualização nessa experiência e nesse texto é entendida tal como Ramos (2002): a aproximação do conteúdo formal (científico) do conhecimento trazido pelo aluno (não formal), para que o conteúdo escolar torne-se interessante e significativo para ele.

Ao longo das discussões, os licenciandos relataram que, assim como o estudante C, que na educação básica, quando tiveram os primeiros ensinamentos sobre o tema, esses ocorreram por meio de exercícios repetitivos e sem que pudessem perceber as aplicações daquilo que estudavam. Tal resultado foi previsto por Coelho, Machado e Maranhão (2005), como destacamos anteriormente.

Inicialmente as percepções e as respostas à questão disparadora se fundamentavam no contexto da sala de aula e na relevância do tema para estudantes do sexto ano do Ensino Fundamental (ano a partir do qual os licenciandos poderão atuar ensinando o tema) e o aprofundamento das discussões sobre tais percepções levou os professores a produzirem uma lista de percepções mais incrementada, que apresentamos no Quadro 1.

Quadro 1
Percepções após aprofundamento das discussões

Fonte: A autora, 2018

A preocupação com os usos da decomposição em fatores primos esteve presente na discussão sobre a inclusão de cada um dos tópicos da lista. E, como um desdobramento dessa preocupação, identificamos também a preocupação com o ensino. Os sujeitos dessa pesquisa entendem que é função do professor facilitar a aprendizagem, nas palavras de um deles: “tornar a aprendizagem significativa para os alunos do sexto ano”. Nesse sentido, Serrazina (2003) defendem que contextualizar e mostrar as aplicações daquilo que é estudado são ações que podem contribuir.

Para os licenciandos investigados, é preciso entender, desde os anos iniciais, que a decomposição em fatores primos é uma das formas de representação dos números compostos, bem como, . Reconhecer também, que ela pode ser usada em processos para a obtenção dos divisores de um número composto e para a obtenção do m.m.c. e do m.d.c. entre dois ou mais números.

Por intermédio da análise dos protocolos foi Revelado os saberes existenciais (TARDIF, 2014), pois eles foram buscar em suas experiências como estudantes da educação básica, situações-problema que requerem cálculos de m.m.c. e m.d.c.. Como podemos constatar no registro do estudante A quando enunciou: “Numa rua foi plantada uma árvore de 5 em 5 metros e fincado um poste de 12 em 12 metros. Se no início da rua estão juntos uma árvore e um poste, depois de caminharmos quantos metros, encontraremos novamente uma árvore e um poste juntos?”. Já para o m.d.c., começou a enunciar, mas não conseguiu concluir, alegando não se lembrar exatamente. Tal fato nos levou à reflexão de que tais problemas eram idealizados e não correspondiam a nenhuma experiência que pudesse ter sido vivida por eles na infância ou adolescência, o que reforça as ideias de Lins e Gimenez (1997) sobre os problemas relacionados ao ensino da aritmética na educação básica.

Esses problemas ficaram ainda mais evidentes quando os licenciandos não conseguiram listar uma situação cotidiana em que se aplica imediatamente a decomposição de números em fatores primos. Na transcrição do áudio sobre uma discussão do tema, podemos identificar um exemplo de tal impossibilidade:

Pesquisadora: Você acabou de enunciar uma situação-problema em que podemos calcular o m.m.c. entre números para chegarmos à solução. Mas, você sabe me dizer uma situação cotidiana em que precisamos obter a decomposição em fatores primos?

Estudante A: Ah! Se eu quiser listar todos os divisores de um número.

Pesquisadora: Mas você já se viu em alguma situação do seu dia a dia em que você pensou que teria que decompor um número em fatores primos? Para tomar um ônibus? Para fazer compras? Obter medidas em casa? Fazer uma receita? Dosagem de medicamentos? Leitura de um exame médico?

Estudante A: Não! Realmente não. Eu decomponho para usar na própria matemática.

Confirmando a preocupação dos licenciandos em identificar as aplicações daquilo que estudam ou ensinam, o estudante A se esforçou para encontrar uma situação cotidiana em que precisasse decompor um número em fatores primos, no entanto, não encontrou. Foi possível perceber não só em sua fala, mas também em sua expressão facial certa frustração. Até então ele acreditava que, em uma boa aula, todos os conceitos abordados deveriam ser contextualizados no dia a dia dos estudantes, e isso não estava sendo possível com a decomposição em fatores primos. A discussão foi aprofundada e uma nova visão curricular da matemática começou a ser construída. Os licenciandos passaram a admitir que as aplicações e contextualizações de um conceito não se restringem ao cotidiano, podem ocorrer relacionadas a outras áreas da ciência, como no caso dos números primos à criptografia, ou a outras áreas dentro da matemática. Importante é que, qualquer que seja a circunstância, os significados dos conceitos sejam negociados com os estudantes de modo que a contextualização faça sentido para eles. Nesse momento, pudemos perceber que os sujeitos, reformulando suas experiências, davam os primeiros passos na direção das construções curriculares (SERRAZINA, 2003; TARDIF, 2014).

Na sequência, os outros licenciandos reafirmaram o que o licenciando A já havia mencionado, que é a utilização da decomposição em fatores primos para a identificação do conjunto de divisores de um número e destacaram a funcionalidade da escrita da decomposição em fatores primos de um número utilizando potências. Para eles, a escrita envolvendo potências favorece a enunciação dos processos de cálculo do m.m.c. e do m.d.c. e a identificação dos divisores. É importante observar, no entanto, que, conforme a discussão sobre os usos da decomposição em fatores primos se aprofundava, a discussão sobre o ensino deixava de ser meramente didática e passava a ser também uma discussão matemática. Por exemplo, as situações que favorecem o reconhecimento de um fator primo suscitaram a inclusão dos tópicos número composto e divisão exata. Durante uma discussão sobre a distinção de números que podem ser usados na decomposição em fatores primos de um número, o licenciando A compartilhou com seu colega, o licenciando B, a seguinte reflexão: “Pra saber se um número pode ser usado na decomposição de outro, precisamos saber se ele é primo e se a divisão é exata”. Esta discussão evidenciou que a aquisição do conceito dos números compostos é uma ação fundamental para a compreensão do número primo. Mostrando-se um investigador do processo de ensino e aprendizagem (SERRAZINA, 2003), o licenciando B ponderou: “Fica mais fácil explicar o que é um número primo, se a gente der também exemplos de números compostos. Se a divisão der resto zero, o número é um fator, mas se ele também for primo, aí ele é um fator primo”.

A íntegra da discussão resultou no entendimento de número composto como elemento facilitador da comparação de número primo e, consequentemente, na sua inclusão na lista de percepções. Além disso, a discussão sobre a ação de decompor um número natural levou os licenciandos a reconhecer os dois esquemas fundamentais na decomposição de um número em fatores primos – a identificação da sequência de números primos e a realização de divisões sucessivas por números dessa sequência até que o quociente obtido seja 1 (BARBOSA, 2008) – e lhes permitiu compreender que a divisão realizada no conjunto dos números naturais, com obtenção de resto e quociente naturais é necessária nesse processo.

Assim, revelaram o entendimento de que, já no Ensino Fundamental, é preciso estabelecer juntamente com os estudantes o domínio de validade dos conceitos e procedimentos estudados. Para os conceitos em questão, numa turma de sexto ano, o domínio de validade é o conjunto dos números naturais. No nível superior, como veriam na disciplina que começariam a cursar, esse domínio se estende ao conjunto dos números inteiros. Como resultado dessas discussões, tivemos ainda a inclusão do conjunto dos números naturais e da expressão domínio de validade na lista de percepções. Analisamos a seguir os dados obtidos quanto a ênfase do panorama.

Panorama

Como mencionamos anteriormente, a ênfase Panorama se caracterizou pela associação de aspectos elementares da decomposição que são estruturantes para a sua compreensão. Nesse sentido, destacam-se, por exemplo, o conceito de número primo, o entendimento da decomposição em fatores primos de um número como uma forma de representá-lo e o rompimento com a ideia equivocada, construída frequentemente desde os anos iniciais do Ensino Fundamental, de que a matemática busca resultados numéricos e que, portanto, uma decomposição não pode ser um resultado matemático desejado nem um procedimento apropriado (BARBOSA, 2008).

Um episódio ilustrativo desta etapa envolveu a reflexão sobre como proceder diante de questões como: o que é o resto da divisão de 33 x 52 x 7 por 15? A maioria dos sujeitos, mais precisamente, dez dos doze sujeitos, procedeu calculando o dividendo e efetuando sua divisão por 15 para chegar ao resto zero, enquanto apenas dois deles decompuseram o 15 em fatores primos e, percebendo que os fatores primos de 15 também o são do dividendo, concluíram que estavam diante de uma divisão exata. Procedimentos como o realizado pela maioria dos sujeitos também pode ser facilmente verificado entre os sujeitos das pesquisas de Campell (2002) e Teppo (2002). É um procedimento que se caracteriza pela preferência por computar em vez de raciocinar com base nas decomposições.

Assim como esses autores, inferimos que isso se deva ao fato dos licenciandos acreditarem que o sentido da resolução de problemas matemáticos é aquele que vai sempre reduzindo expressões numéricas para que se chegue a um número final. Equivocadamente, não acreditam que uma decomposição, que faz o sentido contrário, possa ser útil na resolução de um problema. Tal como Nacarato, Mengali e Passos (2015) orientam, tivemos aí a oportunidade de levá-los a romper com crenças e concepções equivocadas sobre o que é fazer matemática, construídas desde a mais tenra idade ao longo de seus anos de escolaridade.

Motivados pela situação problema anterior, os licenciandos passaram a descrever os principais equívocos que cometiam quando eram estudantes da educação básica ou, ainda, aqueles cometidos pelos estudantes desse nível com quem conviveram no estágio supervisionado ou lecionando aulas particulares. Além dos equívocos relacionados ao cálculo e à escrita de potências, chamou nossa atenção a dificuldade dos estudantes de interpretarem a decomposição de um número em fatores primos. Como afirmou o licenciando F: “Quando eu pedia para os meninos decomporem um número em fatores primos, tudo bem, mas, se eu desse a decomposição e perguntasse que número é esse, praticamente nenhum me respondia, eu ficava sem resposta”. A discussão sobre esses equívocos ateve-se principalmente ao entendimento de que é necessário que os estudantes compreendam que existem várias maneiras de representarmos os números, não só levando-se em consideração a diversidade de sistemas de numeração de que a humanidade dispõe, mas também as variadas decomposições possíveis para um número: decomposição em parcelas (iguais ou diferentes), em parcelas que são potências de 2, em fatores, em fatores primos etc. Os sujeitos desta pesquisa, que, até então, costumavam privilegiar a decomposição em fatores primos, compreenderam que, para que os estudantes compreendam essa como uma forma de representação, é necessário trabalhar com um tanto de decomposições possíveis, de modo que ela se enleve na diversidade (BARBOSA, 2008). Compreenderam também que é necessário propor tarefas para que os estudantes decomponham, mas também que reconheçam os números a partir de suas decomposições.

Os licenciandos destacaram também que parece evidente que podemos obter a decomposição de um número em fatores primos sem necessariamente percorrermos na ordem crescente, a sequência dos números primos ou, ainda, que essa decomposição é única. Eles relataram que inúmeras vezes viram estudantes da educação básica julgarem suas decomposições erradas por não apresentarem os fatores primos na ordem crescente. Do mesmo modo que comparavam suas decomposições com as dos colegas e, havendo apenas variação na ordem dos fatores, não reconheciam que estavam diante da mesma decomposição, isso revela o desconhecimento da propriedade comutativa para a multiplicação. Outro fato a ser ponderado é de que todo número natural maior que 1 e composto pode ser decomposto de maneira única num produto de primos e que está garantido pelo TFA. Assim, foi possível concluir que o entendimento da decomposição em fatores primos e do TFA se integram de modo que devem ser tratados conjuntamente e não linearmente, com um antecedendo o outro.

Uma sugestão dada pelo licenciando C é que os professores da educação básica, a fim de garantir que os estudantes compreendam a unicidade da decomposição em fatores primos, trabalhassem em sala outros procedimentos diferentes do tradicional. Uma representação do procedimento tradicional está na Figura 2:


Figura 2
decomposição pelo método tradicional
Fonte: A autora, 2018

Já o procedimento proposto pelo licenciando C consiste no desenho de árvores cujas ramificações são fatores do número que se pretende decompor em primos, como mostra a Figura 3:


Figura 3
Decomposição utilizando um processo alternativo
Fonte: A autora, 2018

Esse procedimento, que o licenciando C disse ter conhecido no livro didático de um estudante de sexto ano para quem lecionava aulas particulares e que também pode ser encontrado em Barbosa (2008), permite a obtenção de representações distintas para a decomposição de um mesmo número em fatores primos, por exemplo, a primeira ramificação poderia ser com 4 e 9 em vez de 3 e 12. No entanto, resgatando as propriedades associativa e comutativa da multiplicação, chegaríamos às mesmas igualdades que constam na Figura 3 anterior. Com a adesão dos colegas de turma, o estudante C defendeu que esse procedimento permite a produção de várias representações e a exploração do TFA por meio delas. Cabe ressaltar mais uma vez que os relatos dos sujeitos sobre fatos observados com estudantes da educação básica e a sugestão de estratégias didáticas são aspectos que sinalizam a formação de professores, que geram saberes profissionais tal como visto em Serrazina (2003) e Tardif (2014).

Vínculos

A terceira ênfase que identificamos em nosso estudo, os vínculos, corresponde às conexões matemáticas estabelecidas, não se limitando à decomposição em fatores primos. Por exemplo, a discussão alcançou a compreensão dos processos de obtenção do m.d.c. e do m.m.c. entre dois ou mais números com base em suas decomposições em fatores primos, que até então eram entendidos apenas como uma sequência de etapas a serem repetidas. Na sequência, os sujeitos reconheceram a utilização do m.d.c. entre o numerador e o denominador de uma fração para se chegar rapidamente à sua forma irredutível e a utilização do m.m.c. para a redução de frações a um denominador comum. Mas o que marcou, de fato, essa etapa, foram os vínculos que os licenciandos estabeleceram entre a decomposição em fatores primos, seu uso para se fazer inferências sobre cálculos e as características da estrutura multiplicativa.

Retornando à situação em que se solicitava o resto da divisão de 33 x 52 x 7 por 15, o estudante E comentou que “alguns alunos responderem as questões de divisibilidade corretamente, mas isso não é garantia de que estejam compreendendo os conceitos”. Segundo ele, na verdade, as respostas podem estar baseadas numa observação de características superficiais, em vez da coordenação dos processos necessários. O exemplo mais nítido disso ocorre quando os estudantes expressam a ideia de que um número é divisível por outro número se o último estiver na decomposição em fatores primos do primeiro. Para eles, ter sucesso na tarefa apenas requer olhar. Referindo-se ao fato, Brown, Thomas e Tolias (2002) argumentam que “para alguém cujas ações são guiadas pela compreensão da estrutura multiplicativa, esta ação de “olhar” para a decomposição em fatores primos pode ser uma versão repleta de significado e condensada da coordenação proposta antes” (p. 56). E lamentam que as ações de boa parte dos estudantes ainda sejam realizadas sem uma consciência dos mecanismos que garantem seu sucesso.

Frente à discussão instalada pelo comentário do participante. E, questionamos: Então como criar condições para que os estudantes da educação básica construam um olhar com significado e não um olhar superficial para a decomposição dos números em fatores primos?

Foi unânime entre os licenciandos que muitos estudantes frequentemente lidam com tarefas relacionadas à divisibilidade e à decomposição em fatores primos sem usar conscientemente conhecimentos da estrutura multiplicativa. Alguns deles, inclusive, reconheceram-se nessa condição. Inferiram que há certa propensão em ver problemas multiplicativos aditivamente. Segundo eles, para muitos estudantes em todos os níveis de ensino, a decomposição prima está relacionada com decompor um número num leque de fatores e compreender a divisibilidade como um assunto de fatoração em termos de isolar e remover. A natureza automática dessas respostas apresenta obstáculos para a reflexão, entretanto, como também concluíram, tal quadro pode ser revertido progressivamente a partir da reflexão sobre os resultados da coordenação dos processos, sublinhando as propriedades comutativa e associativa da multiplicação com o processo de concepção da decomposição em fatores primos. Corroborando com Barbosa (2008), os licenciandos constataram que é importante que as interações na sala de aula se desloquem de um foco numérico para um algébrico por meio dos processos de generalização e abstração. A ênfase em encontrar padrões multiplicativos desloca, então, o foco de atenção de executar cálculos particulares para descrever as operações partilhadas por muitos exemplos. E, nessa direção, Barbosa (2008) ainda acrescenta que “a introdução de símbolos encoraja ainda mais a mudança para um nível estrutural, pois permite que os estudantes notem padrões comuns em muitas situações” (BARBOSA, 2008, p. 30).

Inferências

Como podemos perceber, na etapa anterior, os licenciandos iniciaram um processo de busca de fundamentação das certezas que tinham acerca dos conceitos e métodos de ensino relacionados ao tema decomposição em fatores primos. Nesta etapa, este processo se intensifica e, segundo Rangel, Maculan e Giraldo (2015), é quando as discussões conduzem à problematização das certezas que compunham seus conhecimentos matemáticos sem perder de vista a perspectiva do ensino. Assim, por exemplo, os sujeitos questionaram certezas anteriores tais como: o número 1 não é primo. O questionamento foi prontamente respondido pelo licenciando E que afirmou: “se o número 1 fosse primo, o TFA seria contrariado uma vez que teríamos infinitas decomposições em fatores primos para um mesmo número”.

Outra certeza também questionada se refere à simplificação de cálculos envolvendo números decompostos em fatores. Por meio de exemplos numéricos e consequentes generalizações a partir do emprego de propriedades da multiplicação a esses exemplos, os licenciandos perceberam que a simplificação só produzirá resultado garantido e certo se todos os fatores constantes nas decomposições forem primos. Caso contrário, há que se proceder a decomposição em primos dos fatores não primos para, só em seguida, efetuar as possíveis simplificações.

Cabe mencionar que, como afirmaram, os conhecimentos matemáticos e profissionais construídos nas oficinas os levaram a questionar informações recebidas na educação básica, que aceitavam como verdadeiras sem, sequer, questioná-las. O fato de refletirem sobre essas certezas para, então, justificá-las matematicamente, nos sugere que a formação que propomos incidiu sobre suas crenças e concepções, instigando-os a futuramente exercer uma prática docente diferente do modelo caracterizado por exercícios mecanizados e pouco reflexivos que alguns mencionaram ter vivenciado ao longo da vida escolar (NACARATO; MENGALI; PASSOS, 2015).

6. Considerações finais

Na pesquisa que apresentamos neste artigo, realizamos um estudo de conceito associado à decomposição em fatores primos com estudantes de um curso de licenciatura em matemática do Rio de Janeiro, inscritos para cursar a disciplina voltada para a Teoria Elementar dos Números.

O estudo da Teoria Elementar dos Números é um assunto particularmente apropriado para futuros professores porque, aplicando seus conhecimentos da estrutura multiplicativa neste contexto, terão oportunidades valiosas para enriquecer sua compreensão das propriedades de multiplicação e divisão. Para fazer uso da vantagem do conceito da estrutura multiplicativa, o indivíduo deve ter experiência com a representação de números naturais como produto de primos. Isto inclui decompor em fatores primos, executar aritmética sobre as decomposições e usar a estrutura embutida nas fatorações para reconhecer e justificar relações de divisibilidade.

A natureza elementar do processo de construção da decomposição em fatores primos para números pequenos pode sugerir para alguns que o uso destas decomposições como ferramenta estrutural para resolver problemas é igualmente elementar. Entretanto, nossos resultados indicam que os licenciandos podem ainda apresentar dificuldades para trabalhar com essa representação e suas propriedades. Foi somente nas etapas finais do estudo que eles passaram a considerar as propriedades advindas dos conceitos de múltiplo e fator para fazer uso da decomposição em fatores primos na simplificação cálculos. Refletindo sobre o ensino, concluíram que o fato de decompor um número em fatores primos não é uma garantia de que os estudantes da educação básica façam uso dessa decomposição para obter os seus fatores, simplificar cálculos, encontrar o m.m.c. ou o m.d.c. entre números. A fim de se garantir a atuação consciente e não mecanizada dos estudantes nessas ações, há que se desenvolver um trabalho em sala de aula que explore progressivamente as estruturas multiplicativas, isto é, a multiplicação de números naturais, suas propriedades e representações.

7. Referências

BARBOSA, G. S. O teorema fundamental da aritmética: jogos e problemas com alunos do sexto ano do ensino fundamental.2008. Tese de Doutorado. São Paulo: PUC/SP/Educação Matemática, 2008.

BRITO, A. J.; ALVES, F. T. O. Profissionalização e saberes docentes: análise de uma experiência em formação inicial de professores de Matemática. In: NACARATO, A. M.; PAIVA, M. A. V. (Org.). A formação do professor que ensina Matemática: perspectivas e pesquisas. 3. ed. p. 27-42. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

CAMPBELL, S. Coming to terms with division: Preservice teachers’ understanding, in Learning and Teaching Number Theory, Ed. Campbell & Zazkis, Ablex Publishing, Westport, 2002.

COELHO, S. MACHADO, S. MARANHÃO, C. Como é utilizado o Teorema Fundamental da Aritmética por atores do Ensino Fundamental? Cd-rom, SBEM, 2005.

DAVIS, B. Concept Studies: Designing settings for teacher’s disciplinary knowledge. Proceedings of the 34th Annual Conference of the International Group for the Psychology of Mathematics Education, pp. 63-78. Minas Gerais: PME, 2010.

DAVIS, B., & RENERT, M. The Math Teachers Know – Profound understanding of Emergent Mathematics. New York: Routledge, 2014.

LINS, R. C.; GIMENEZ, J. Perspectivas em aritmética e álgebra para o século XXI. Campinas: Papirus, 1997.

NACARATO, A. M.; MENGALI, B. L. S.; PASSOS, C. L. B. A Matemática nos anos iniciais do ensino fundamental: tecendo fios do ensinar e do aprender. 2. ed. – Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

RAMOS, M. N. A educação profissional pela Pedagogia das Competências: para além da superfície dos documentos oficiais. Educação & Sociedade, Campinas, v. 23, n. 80, p. 405-427, 2002.

RANGEL, L., GIRALDO, V., & MACULAN, N. Conhecimento De Matemática Para O Ensino: Um Estudo Colaborativo Sobre Números Racionais. Jornal Internacional de Estudos em Educação Matemática, 8, p. 42-70, 2015.

TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. (17a ed.) Petrópolis: Vozes, 2014.

TEPPO, A. R. Integrating content in classroom Mathematics. In: CAMPBELL, S.; ZAZKIZ, R. (Org.). Learning and teaching number theory, p. 117-130. Westport: Ablex Publishing, 2002.

Autor notes

[1] Doutora em Educação Matemática pela PUC-SP. Professor(a) do Programa de Pós-Graduação em Educação Comunicação e Cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Endereço para correspondência: Rua Maria José, 72, Madureira, Rio de Janeiro, RJ.

Ligação alternative



Buscar:
Ir a la Página
IR
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
Visor de artigos científicos gerado a partir de XML JATS4R