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(Des)construção curricular necessária: resistir, (re)existir, possibilidades insubordinadas criativamente

Required curriculum (de)construction: resist, (re)exist, creatively insubordinate possibilities

(De)construcción de currículo requerida: resistir, (re)existir, posibilidades creativamente insubordinadas

Márcia Cristina Costa Trindade Cyrino *
Universidade Estadual de Londrina, Brasil
Regina Célia Grando **
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Revista de Educação Matemática

Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil

ISSN: 2526-9062

ISSN-e: 1676-8868

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 19, e022003, 2022

sbem.sp.revista@gmail.com

Recepção: 11 Janeiro 2022

Aprovação: 14 Fevereiro 2022

Publicado: 08 Março 2022



DOI: https://doi.org/10.37001/remat25269062v19id728

Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar os impactos das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e da Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC – Formação) e em seguida acenar com algumas formas de resistência no campo formativo. Na análise dos impactos são discutidas tensões no campo epistemológico, no campo curricular e no campo da profissionalização. Nessa análise foi possível observar que, no campo epistemológico, o professor é entendido como consumidor/implementador de conhecimentos produzidos por outros agentes educacionais. Há uma tentativa de padronizar os currículos dos cursos de formação de professores da Educação Básica, uma ênfase na pedagogia das competências, um rompimento da unidade teoria-prática e um fracionamento do conhecimento docente, ao romper com a ótica de organicidade entre a formação inicial e a formação continuada. No campo da profissionalização há uma responsabilização individual dos professores por sua formação e por seu desenvolvimento profissional. Como uma forma de resistir e (re)existir, defende-se uma (des)construção curricular, na perspectiva da insubordinação criativa, na busca de caminhos, brechas, atalhos, táticas, criativas e colaborativas que valorizem a profissionalização do professor e uma formação matemática em prol da justiça social.

Palavras-chave: Formação Inicial de Professores, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores, Currículo, Profissionalização, Insubordinação Criativa.

Abstract: The objective of this article is to analyze the impacts of the National Curriculum Guidelines for the Initial Education of Basic Education Teachers and the Common National Base for the Initial Education of Basic Education Teachers (BNC – Education) and then present forms of resistance in the formative field. In the analysis of the impacts, we discuss tensions in the epistemological, curricular, and professionalization fields. In this analysis, we could observe that, in the epistemological field, the teacher is understood as a consumer/implementer of knowledge produced by other educational agents. There is an attempt to standardize the curricula of the education courses for basic education teachers, an emphasis on the pedagogy of competencies, a disruption of the theory-practice unit and fragmentation of teacher knowledge, by breaking with the perspective of organicity between preservice and inservice education. In the professionalization field, the teachers are held individually responsible for their education and professional development. As a way of resisting and (re)existing, a curricular (de)construction is defended, from the perspective of creative insubordination, in the search for paths, gaps, shortcuts, creative and collaborative tactics that value the teachers' professionalization and mathematics education for social justice.

Keywords: Preservice Teacher Education, National Curriculum Guidelines for Initial Teacher Education, Curriculum, Professionalization, Creative Insubordination.

Resumen: El objetivo de este artículo es analizar los impactos de las Directrices Curriculares Nacionales para la Educación Inicial de Maestros de Educación Básica y la Base Nacional Común para la Educación Inicial de Maestros de Educación Básica (BNC – Formación) y luego presentar algunas formas de resistencia en el campo formativo. En el análisis de los impactos, discutimos las tensiones en los campos epistemológico, curricular y de profesionalización. En este análisis, pudimos observar que en el campo epistemológico el docente es entendido como consumidor/implementador del conocimiento producido por otros agentes educativos. Se intenta estandarizar los planes de estudio de los cursos de educación para maestros de educación básica, haciéndose hincapié en la pedagogía de las competencias, interrumpiendo la unidad de teoría-práctica y fragmentando el conocimiento del maestro, rompiendo con la perspectiva de la organicidad entre la educación inicial y la educación continua. En el campo de la profesionalización, los profesores son individualmente responsabilizados por su educación y desarrollo profesional. Como forma de resistir y (re)existir, se defiende una (de)construcción curricular desde la perspectiva de la insubordinación creativa, en la búsqueda de caminos, brechas, atajos, tácticas creativas y colaborativas que valoren la profesionalización de los docentes y la educación matemática para la justicia social.

Palabras clave: Formación Inicial Docente, Pautas Curriculares Nacionales para la Formación Inicial Docente, Currículum, Profesionalización, Insubordinación Creativa.

INTRODUÇÃO

O cenário (des)mobilizador, (de)formador e preocupante esboçado com relação às políticas públicas de formação de professores no Brasil, sobretudo pela atual normatização da Base Nacional para a Formação de Professores (BRASIL, 2019), vem ao encontro de políticas internacionais de formação de professores já denunciadas e combatidas por pesquisadores, como Zeichner e Saul (2014, p. 2214) que apontam que “acabar com o sistema de formação de professores nas universidades e substituí-lo por redes de programas com desenho empresarial, programas de formação de docentes desenvolvidos e financiados com dinheiro corporativo” significa “desprofissionalizar” o processo de formação de professores. Significa, sobretudo, retirar das Universidades o seu compromisso formativo de qualidade, que articula pesquisa, ensino e atividades de extensão, compromissos esses com a sociedade.

Paralelo a isso, os ataques constantes sobre o que se produz em Ciência, no País, reverberam a desconsideração dos resultados de pesquisas em formação de professores há anos produzidas dentro e fora do Brasil. Isso se evidencia, por exemplo, nas palavras do então Ministro da Educação, Rossieli Soares, proferidas em 19 de dezembro de 2018 (grifo nosso):

Concluímos a discussão sobre quais são os direitos de aprendizagem, as competências e as habilidades essenciais para os nossos alunos na educação básica [referindo-se à BNCC]. Agora, precisamos dizer ao Brasil o que é ser um bom professor, quais são as competências e habilidades necessárias para ele, especialmente com foco na prática pedagógica, numa visão mais próxima da sala de aula.[1]

“Dizer ao Brasil o que é ser um bom professor” está diretamente atrelado ao desenvolvimento de competências e habilidades presentes nos documentos curriculares e não sustentados por pesquisas no âmbito da formação de professores, desenvolvidas nas escolas, nas universidades e nos centros de Pesquisa.

Não é de hoje que a formação de professores se constitui como um campo de luta ideológica e política no Brasil. Nas duas últimas décadas, as diferentes Resoluções que definem as diretrizes curriculares nacionais (DCN) para a formação inicial de professores para a Educação Básica, publicadas pelo Conselho Nacional de Educação - CNE (Resoluções CNE/CP 01/2002, 02/2015 e 02/2019), explicitam concepções de formação de professores distintas que atravessam projetos curriculares e pedagógicos com pautas que aportam disputas recorrentes na sociedade civil e no Estado.

Nos últimos anos, os constantes ataques e desmontes na Educação, realizados em nome da “qualidade da educação”, responsabilizam os educadores pelo cenário educacional e buscam uma formatação do currículo. Isso pode ser observado com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da Educação Básica e, mais recentemente, com a publicação da Resolução CNE/CP n.o 02 de 20/12/2019, que “Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e que institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC - Formação)”. Essa Resolução evidencia mais um processo de desvalorização e precarização da formação dos profissionais do magistério da Educação Básica e demonstra ausência de:

1) diálogo com as instituições universitárias, com as associações científicas do campo educacional e com as entidades representativas dos professores, em uma prática impositiva e autoritária, cada vez mais comum, nos últimos anos;

2) resultados de investigações brasileiras sobre a Formação de Professores, ou seja, falta das produções no campo da formação, da política educacional e do currículo. Mais uma vez se observa negação do conhecimento científico brasileiro, particularmente no campo da Educação e da Educação Matemática;

3) articulação dessas resoluções com Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei nº 13.005/2014).

O propósito deste artigo é analisar os impactos destas diretrizes e da BNC – Formação para a formação de professores e, em seguida, acenar com algumas formas de resistência no campo formativo, para além daquelas que ocorrem no campo político e que têm mobilizado várias associações, como ANPED, ANFOP, SBEM, dentre outras, com pedidos de revogação da Resolução CNE/CP n.. 02/2019.

IMPACTOS DAS DCN PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA

As atuais Diretrizes Curriculares Nacionais (DNC) para a formação de professores da Educação Básica expressam, em seu conjunto, mudanças significativas no campo epistemológico, no campo curricular e no campo profissional. Ainda que tais mudanças nesses campos sejam apresentadas separadamente, neste artigo elas estão imbricadas e explicitam os princípios e as estratégias para a formação de professores que se fazem presentes na DNC.

No campo epistemológico

Na análise dos princípios e das concepções sobre a formação de professores e o papel do professor observamos a retomada da racionalidade formativa existente nas reformas dos cursos de licenciatura no início dos anos 2000. No entanto, essa retomada amplia ainda mais os impactos nefastos no processo de formação, os quais serão discutidos no decorrer deste texto.

Essa racionalidade formativa se explicita na DNC pelo seu aspecto prescritivo e prático-organizacional centrado em competências (gerais e específicas) e habilidades, com forte vínculo/alinhamento com a BNCC da Educação Básica, ou seja, a arquitetura do processo de formação de professores está submetida à BNCC. Nos artigos 2.º e 3.º da Resolução CNE/CP n.o 02/2019, prevalece uma visão prática, técnica-instrumental, ancorada em pressupostos do saber fazer, do fazer didático como um conjunto de técnicas.

Art. 2.º A formação docente pressupõe o desenvolvimento, pelo licenciando, das competências gerais previstas na BNCC-Educação Básica, bem como das aprendizagens essenciais a serem garantidas aos estudantes, quanto aos aspectos intelectual, físico, cultural, social e emocional de sua formação, tendo como perspectiva o desenvolvimento pleno das pessoas, visando à Educação Integral (BRASIL, 2019, p.2).

No parágrafo único do Art. 3.º, evidencia-se uma correspondência entre as competências profissionais requeridas aos professores e as competências gerais e aprendizagens essenciais estabelecidas na BNCC.

Na referida resolução, não há qualquer referência à autonomia das instituições formadoras na elaboração de um projeto institucional de formação de professores que considere: a educação como um processo emancipatório; aos conhecimentos que atendam à diversidade social; ao ato pedagógico em sua complexidade; e às implicações culturais e políticas desse projeto.

Desaparece do horizonte formativo a constituição de um professor com capacidades críticas, analíticas, reflexivas e criativas. Não há um reconhecimento da especificidade do trabalho docente, que conduza à práxis, como expressão da articulação entre teoria e prática, e à exigência de que se leve em conta a realidade dos ambientes das instituições educativas da Educação Básica e da profissão. A ausência dessa especificidade pode ter um impacto negativo não somente no perfil do egresso, na base identitária do professor como profissional responsável e nos conhecimentos inerentes à sua atuação em sala de aula (conhecimentos do conteúdo, conhecimento pedagógico do conteúdo, conhecimento do currículo, etc..), mas, e sobretudo, na sua formação profissional como um todo.

De acordo com Nacarato e Moreira (2022, p. 6), as DCN se configuram como um “ataque às práticas formativas que vêm sendo realizadas País afora e que visam a contribuir para a formação de um profissional com visão crítica da Educação”.

Do modo como está posto na Resolução 02/2019, o professor é entendido como consumidor/implementador de conhecimentos produzidos por outros agentes educacionais (p.e. por docentes de Instituições de Ensino Superior (IES), pesquisadores, organizadores de currículos etc...).

Na referida resolução, muitas palavras foram cooptadas da literatura. É preciso estudá-las para que não tenhamos uma leitura superficial, ou ingênua.

No campo curricular

No campo curricular observamos: a) uma tentativa de padronizar os currículos dos cursos de formação de professores da Educação Básica b) uma ênfase na pedagogia das competências; c) um rompimento da unidade teoria-prática, e d) um fracionamento do conhecimento docente, ao romper com a perspectiva de organicidade entre a formação inicial e a formação continuada.

Na nova diretriz, a formação inicial de professores passa a ter sua organização curricular a partir de três dimensões, diferente da resolução de 2015 que propunha uma organização por núcleos (estudos de formação geral, aprofundamento e diversificação de estudos das áreas de atuação profissional, e estudos integradores para enriquecimento curricular). As dimensões propostas no Art. 4.º são: I - conhecimento profissional; II - prática profissional; e III - engajamento profissional. Na dimensão I, o professor deverá “dominar os conteúdos” e saber como ensiná-los, demonstrar conhecimento sobre os alunos, seus processos de aprendizagem e seus contextos, sobre a estrutura e governança dos sistemas educativos. Na dimensão II, o professor deve planejar e gerir suas ações, tendo em conta os objetos do conhecimento, competências e habilidades previstas no currículo. E na dimensão III, está previsto que o professor deve se comprometer com o seu próprio desenvolvimento profissional, com a construção do projeto pedagógico da escola e com a comunidade escolar.

Para cada dimensão, são estabelecidas competências específicas e suas respectivas habilidades, descritas no Anexo da Resolução 02/2019. Cabe dizer que essas dimensões indicadas para a organização da formação docente no Brasil são muito similares às estabelecidas na proposta curricular australiana (AUSTRÁLIA, 2018).

A imposição de uma centralização curricular, com um modelo pautado em competências docentes, reverbera uma concepção redutora e esvaziada de currículo, que desconsidera a pluralidade e desrespeita a diversidade cultural, de público e instituições, ferindo o princípio da gestão democrática e da liberdade de ensinar e aprender. Rompe com uma perspectiva humanista e cidadã do currículo.

Do modo como está posto na DCN, a formação inicial se restringe a capacitar o futuro professor para implementar a BNCC. No caso da formação inicial de professores que ensinam matemática (PEM), ao reduzir a formação ao desenvolvimento das competências e habilidade previstas na BNCC, corre-se o risco de perder a essência e os fundamentos dos conhecimentos matemáticos necessários para o ensino, que permitem ao professor justificar procedimentos, conhecer outros procedimentos produzidos em diferentes ambientes culturais, em momentos históricos diferenciados. Torna-se imperativo que, no processo de formação, o futuro professor possa conhecer e discutir como os conceitos e as ideias atuais se desenvolveram, sua epistemologia, sua história, sua linguagem e semiose, assim como as implicações desses conceitos e ideias para a dimensão político-pedagógica no desenvolvimento das pessoas e da cultura humana.

Além da perspectiva prescritiva presente na descrição das dimensões (no Art. 4.º), é atribuído ao professor toda responsabilidade pelo seu desenvolvimento profissional (discussão ampliada na seção que discutiremos o campo profissional).

Nos cursos de licenciatura, de acordo com o Art. 11, a organização curricular está estruturada em três Grupos:

I - Grupo I: 800 (oitocentas) horas, para a base comum que compreende os conhecimentos científicos, educacionais e pedagógicos e fundamentam a educação e suas articulações com os sistemas, as escolas e as práticas educacionais.

II - Grupo II: 1.600 (mil e seiscentas) horas, para a aprendizagem dos conteúdos específicos das áreas, componentes, unidades temáticas e objetos de conhecimento da BNCC, e para o domínio pedagógico desses conteúdos.

III - Grupo III: 800 (oitocentas) horas, prática pedagógica, assim distribuídas: a) 400 (quatrocentas) horas para o estágio supervisionado, em situação real de trabalho em escola, segundo o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) da instituição formadora; e b) 400 (quatrocentas) horas para a prática dos componentes curriculares dos Grupos I e II, distribuídas ao longo do curso, desde o seu início, segundo o PPC da instituição formadora (BRASIL, 2019, p.6, grifos nossos).

As atividades complementares, presentes desde 2002 como componente curricular dos cursos de licenciatura, não constam das atuais DCN.

Ao estabelecer a forma como a carga horária deve ser distribuída, não apenas em termos da quantidade de horas, mas também em conteúdos e anos do currículo, acaba-se por padronizar e engessar os cursos de formação de professores. A organização descrita em detalhes limita a autonomia das universidades na gestão de suas especificidades locais e regionais.

Essa organização fortalece a dicotomia entre conteúdo e metodologia, didática e prática de ensino, ao enfatizar o conhecimento pedagógico do conteúdo (Art. 13, parágrafo primeiro, item III). A maior parte da carga horária do curso é destinada à aprendizagem dos conteúdos específicos e aos objetos de conhecimento da BNCC, e para o domínio pedagógico desses conteúdos. Ao assumir uma perspectiva de treinamento para desenvolver a BNCC, corre-se o risco de transformar o criticado modelo 3+1 no modelo de 1+3.

O conhecimento sobre a prática assume um papel de maior relevância, em detrimento de uma sólida formação teórica e interdisciplinar, intelectual e política dos professores, empobrecendo a formação e, consequentemente, a sua autonomia, o seu exercício do profissional e a constituição de sua identidade profissional.

A ênfase dada à prática provoca um rompimento da unidade (articulação) Teoria e Prática. O conhecimento teórico é secundarizado na mediação pedagógica. Essa centralidade na prática, ao aplicar a BNCC, pode impor uma abordagem de viés tecnicista, com uma visão aplicacionista, ancorada em estudos já ultrapassados das metodologias. Há retrocesso significativo não só na matriz curricular, mas no que ela explicita: um empobrecimento da qualidade da formação, com a centralização em processos formativos pautados em um modelo técnico, instrumental e prescritivo. Treinar o professor somente para a prática esvazia a essência dos conceitos matemáticos (como já citado anteriormente).

No Grupo III – Práticas Pedagógicas, para além do estágio, é considerada a Prática dos componentes curriculares, diferente do que havia anteriormente, a Prática como Componente Curricular. O uso da contração (de + os) dosnos remete à prática como ato de exercitar os conhecimentos que compõem o componente curricular, como treinamento.

A Prática como Componente Curricular (PCC) veicula a proposta de uma integração da prática da profissão do professor como uma dimensão dos conteúdos das disciplinas. A ideia da PCC é a de buscar uma integração efetiva do licenciando com sua futura prática profissional na formação inicial, ou seja, constituir e consolidar espaços de formação articulados com a escola, em qualquer que seja o componente curricular.

Não podemos restringir a prática a hábitos ou procedimentos desenvolvidos em uma base automática e individual, ou a um modus operandi, uma vez que ela envolve “todas as relações implícitas, convenções tácitas, sinais sutis, regras favoráveis não reveladas, intuições reconhecíveis, percepções específicas, sensibilidades bem afinadas, entendimentos personificados, suposições latentes e visões de mundo compartilhadas” (WENGER, 1998, p.47). A prática é um processo contínuo, social e interativo, localizada no tempo e no espaço.

Implementar a PCC não é uma tarefa fácil. Em 2016, foram publicados dois volumes na “Educação Matemática em Revista” – SBEM, sobre essa temática (um volume com foco em programas e cursos e outro em disciplinas) como uma demanda do V Fórum Nacional das Licenciatura em Matemática.

A instituição de práticas, nos currículos de formação inicial de professores de matemática, associada à sua futura atividade profissional, propicia estabelecer vínculos entre o contexto histórico, no qual se dá a formação, e as constantes evoluções das práticas cognitivas e organizativas do futuro professor.

Pesquisas em Educação Matemática apontam para a importância de se conceber a formação inicial de professores que ensinam matemática sob uma perspectiva orientada para e a partir da prática de sala de aula da Educação Básica, da qual emergem saberes próprios. No entanto, essa dimensão parece ser desconsiderada nas DCN de formação de professores, ao não enfatizar a prática como componente curricular.

A escola é, na sua essência, um espaço potencialmente formativo. Os professores e demais agentes que lá estão são sujeitos dotados de conhecimentos capazes de contribuir para a formação de futuros professores.

A aproximação desses espaços pode promover um ciclo virtuoso, na medida em que, ao promover o diálogo entre o futuro professor e os professores da Educação Básica, aquele possa estar mais aberto às participações em pesquisas, aos estudos e às atividades colaborativas, quando estiverem atuando como professores.

O trabalho colaborativo entre professor e futuro professor é de fundamental importância. Assumir a escola como um lócus privilegiado de formação significa substituir uma cultura fortemente individualista por uma cultura colaborativa, tendo em conta seu caráter sistêmico.

Ao romper com a perspectiva de organicidade entre a formação inicial e a formação continuada, o distanciamento entre a universidade/campo de formação e a escola fica ainda mais acentuado.

Nos últimos anos, as investigações defendem a formação inicial e continuada como um continuum.

O projeto de formação deve ser elaborado e desenvolvido por meio da articulação entre a instituição de educação superior e o sistema de educação básica, envolvendo a consolidação de fóruns estaduais e distrital permanentes de apoio à formação docente, em regime de colaboração (BRASIL, 2015, p. 05).

A articulação entre universidade e escola em processos formativos pode promover o estabelecimento de uma rotina de cultivar hábitos de reflexão ponderada e sistemática que sustentem o desenvolvimento da identidade profissional dos professores. Isso pode ocorrer por meio do trabalho coletivo; do preparo/organização de materiais e trabalhos a serem desenvolvidos em sala de aula; da partilha de experiências; do estudo e da discussão de conceitos matemáticos; do trabalho individual ou em pequenos grupos, para escolha e resolução de tarefas; da discussão coletiva das resoluções das tarefas; da exploração sem constrangimentos de seus erros e vulnerabilidades.

Pesquisas sobre a formação do PEM evidenciam potencialidades da formação em grupos de pesquisa (que agregam professores e futuros professores), das atividades de extensão, dos grupos colaborativos, CoPs. Como exemplo, os resultados dos estudos relacionados ao Programa Observatório da Educação.

Há princípios e demandas históricas, construídos coletivamente e abordados nas pesquisas na área de formação de PEM, que reiteram que plasmar a formação inicial e a formação continuada fortalece a valorização profissional.

No campo da profissionalização

Há na resolução vigente uma responsabilização individual dos professores por sua formação, por seu desenvolvimento profissional. As ações de formação (inicial e continuada) deixam de ser um direito profissional e passam a ser de responsabilidade própria do (futuro) professor.

Os (futuros) professores são responsabilizados por sua aprendizagem e por eventuais “fracassos” ou “sucessos” em sua formação, sem que se leve em consideração as condições de sua formação e a valorização profissional.

Na formação inicial, há situações de vulnerabilidade que fogem do controle dos futuros professores. Eles nem sempre podem gerenciar as suas condições de formação, sejam elas físicas, humanas, socioeconômicas, bem como os processos de avaliação, das exigências das políticas educativas, dentre outros.

Nas DCN de formação de professores, está presente a lógica de gestão por eficácia, secundarizando o princípio da efetividade social e da inclusão. Há uma retomada do pensamento meritocrático (presente na resolução 2002). O texto das DCN faz menção a Tutoria ou mentoria, mas sem qualquer descrição de seu significado ou de como pode ser feita a sua gestão.

A pedagogia das competências está comprometida com os interesses mercantilistas de fundações privadas. A Resolução 02/2019 permite o surgimento de Designer Educacional; alinhado aos grupos empresariais (agenda de padronização curricular, limitando a autonomia da universidade); à venda de materiais instrucionais em plataformas on-line; à “simplificação” do trabalho do professor.

A padronização do currículo pode fornecer parâmetros para avaliação, assim como a lista de competências e habilidades, presentes no Anexo da referida Resolução, pode ser utilizada como descritora para essa avaliação. Desse modo, estão implícitas novas formas e controle para a atividade docente. Há um capítulo específico na Resolução para tratar de Processo Avaliativo Interno e Externo, evidenciando que o que está em jogo na nova proposta curricular não é somente a qualificação da formação docente, mas a avaliação como forma de controle, deixando para trás uma política de formação, profissionalização e valorização dos educadores, com caminhos para fortalecer a construção da identidade profissional dos professores da Educação Básica.

REFLETINDO SOBRE POSSIBILIDADES DE RESISTÊNCIA INSUBORDINADAS CRIATIVAMENTE

Neste cenário, cumpre uma (des)construção curricular, na perspectiva da insubordinação criativa (D´AMBROSIO; LOPES, 2015), para que possamos encontrar caminhos, brechas, atalhos, táticas, criativamente e colaborativamente traçados a fim de questionar e resistir, defendendo aquilo que sabemos sobre formar professores, que sabemos sobre a formação matemática em prol da justiça social. Insubordinar-se criativamente para questionar prescrições, como o aligeiramento e o reducionismo nas formas de conceber a formação de professores e, mais perverso que isso, a abertura para os espaços mercantilizados para essa formação. Precisamos estar junto com professores, gestores e estudantes, nos chamados “núcleos docentes estruturantes”, nos colegiados de cursos de licenciatura que formam professores que ensinam matemática, nos centros acadêmicos desses cursos, nas sociedades científicas, nos fóruns de licenciaturas, para fomentar o debate e questionar: qual formação desejamos aos nossos professores? Qual o papel de uma política nacional de formação de professores que privilegia um documento-referência como a Base Nacional Comum Curricular que, desde a sua concepção, representa um currículo mínimo nacional?

Para ampliar o debate, fizemos um convite. Um convite aos professores pesquisadores em Educação Matemática para que se insubordinassem criativamente e apontassem desafios e possibilidades de formação e de perfil do formador, que dialogassem com uma Educação Matemática orientada na constituição de uma sociedade pautada por relações democráticas. Defendemos a responsabilidade social, a ética, o discurso democrático e a diversidade cultural na produção de nossas pesquisas de forma a contribuir para a superação, a resistência, a (re)existência e a continuidade diante dos retrocessos e dos ataques que a produção científica vem sofrendo, inclusive em espaços institucionalizados que deveriam defender a Educação, a Ciência e a Vida.

O convite à insubordinação criativa vem como formas de reconhecer uma formação de professores para a justiça social, para que a luta seja persistente

Todos os movimentos por justiça social (antirracismo, feminismo, direitos dos homossexuais) insistiram no reconhecimento de que o pessoal é político. Na atual crítica à cultura do dominador, pensadores e/ou ativistas [professores e/ou pesquisadores] dedicados a transformar a sociedade de forma que todas as pessoas possam ter igual acesso aos direitos humanos básicos têm chamado atenção para a “colonização” da mente e da imaginação. Eles têm enfatizado os vários modos pelos quais indivíduos de grupos oprimidos e/ou explorados foram socializados para nutrir o auto-ódio e, como consequência, não puderam começar a crescer e se tornar cidadãos responsáveis sem primeiro passar por uma mudança de consciência. Essa mudança, em geral, exige que se aprenda a pensar fora da caixa [insubordinar-se]. A fim de pensar fora da caixa, é necessário mobilizar a imaginação de formas novas e diferentes [criativamente] (bell hooks[2], 2020, p.105, grifos nossos).

E a comunidade de educadores matemáticos, também indignada com o projeto político de formação de professores de modo aligeirado, enviesado, longe dos princípios, teorias e práticas da área, respondeu com textos de pesquisas. Passamos a tecer um olhar para esses textos.

OS PROFESSORES PESQUISADORES PROGRESSISTAS... NOSSOS INTERLOCUTORES

os professores progressistas [...] são, em geral, os indivíduos mais dispostos a correr os riscos acarretados pela pedagogia engajada e a fazer de sua prática de ensino [de sua prática de pesquisa em educação matemática] um foco de resistência (bell hooks, 2017, p.36).

As discussões que tecemos estão pautadas em oito textos produzidos por educadores matemáticos que contribuem para as reflexões no campo das políticas públicas de formação de professores, na crítica à Resolução CNE/CP 02/2019 e na concepção de uma formação profissional do PEM[3] em uma perspectiva do desenvolvimento do pensamento crítico.

A extensão universitária é o tema desenvolvido por Maria Celeste Souza de Castro (2022). A autora tece críticas à Resolução CNE/CP 02/2019, considerando que a dimensão social está reduzida a um único princípio norteador que regulamenta a organização curricular, reforçando “o distanciamento, na formação inicial, de questões que interrelacionem assuntos científicos aos assuntos sociais que, normalmente são assuntos que compõem as ações de extensão” (p. 14). Dessa forma, ela reconhece a potencialidade da extensão para a formação inicial de professores no âmbito dos cursos de licenciatura e, para isso, defende a ideia de uma extensão pautada pelo encontro que acontece “com” a escola, “se constituindo como um campo de resistência às políticas semiformativas que homogenizam e determinam padrões pragmáticos à formação de professores” (p. 1). Pela extensão, a dimensão da relação universidade e escola pode vir a ser horizontal e colaborativa, potencializando “o compromisso da Universidade com a escola pública em uma integração efetiva entre a formação inicial e a prática de ensino e, a formação continuada e o desenvolvimento profissional” (p. 18) em um diálogo entre os saberes teórico-prático-humanísticos.

Conceber a extensão como um espaço de resistência representa encontrar formas de se realizarem ações e projetos de extensão que aproximem o futuro professor das problematizações e das reflexões críticas sobre a escola, em colaboração com professores e gestores escolares. O desenvolvimento de projetos de extensão em escolas e/ou em parcerias com grupos e movimentos sociais possibilita articular teoria e prática em prol da responsabilidade social. Sendo assim, cabe uma Educação Matemática crítica que sustente teoricamente tais práticas e favoreça a constituição do pensamento crítico de futuros professores que ensinam matemática. Como concebe bell hooks (2020, p.33, grifos da autora).

O cerne do pensamento crítico é o anseio por saber – por compreender o funcionamento da vida. Em termos mais simples, o pensamento crítico envolve primeiro descobrir o “quem”, o “o que”, o “quando”, o “onde” e o “como” das coisas – descobrir respostas para as infindáveis perguntas da criança curiosa – e então utilizar o conhecimento [matemático] de modo a sermos capazes de determinar o que é mais importante.

Os autores Flávia Cristina de Macêdo Santana, Enio Freire de Paula e Patrícia Sândalo Pereira (2022) também reconhecem as insubordinações criativas por meio da extensão como uma forma de (re)existir, apontando possibilidades da articulação entre Ensino-Pesquisa-Extensão, a partir da Resolução CNE/CP 02/2015, que, para eles, trouxe, em seu bojo, uma formação na perspectiva da realidade da Educação Básica para todos, uma vez que a maioria dos cursos de licenciatura, orientados por essa legislação anterior, já desenvolve projetos de extensão. Santana, Paula e Pereira (2022, p.17-18, grifos dos autores) concluem:

a demarcação dos quatro elementos problematizadores (a atenção ao percurso formativo delineado pelos PPC[4] dos cursos de LM[5], a articulação entre formação inicial e continuada em diferentes espaços formativos, as discussões a respeito dos movimentos de constituição da IP[6] e a defesa da indissociabilidade da tríade Ensino-Pesquisa-Extensão) é representativa desse movimento de resistência intencional e insubordinado frente à implementação da Resolução CNE/CP 02/2019.

No movimento formativo por meio da articulação Ensino-Pesquisa e Extensão, os autores defendem a possibilidade de elaboração de

designs formativos insubordinados que contemplem ações associadas aos conhecimentos que futuros professores de matemática necessitam para ensinar, fazendo-se atravessados pela reflexão crítica e comprometida com a democracia, a justiça social, a ética e a solidariedade (SANTANA; PAULA; PEREIRA 2022, p. 18, grifo dos autores).

As críticas aos modos prescritivos e reducionistas, ou mesmo, decoloniais das políticas públicas de formação de professores, que tradicionalmente revisitam discursos sobre epistemologia da prática disfarçada de uma prática que forme o professor para “saber criar e gerir ambientes de aprendizagem”, bem como a responsabilização do futuro professor por meio do “engajamento” que diz respeito a um comprometimento com a aprendizagem e com a interação com os colegas de trabalho, as famílias e a comunidade escolar, aparecem nos textos de Antonio Miguel, Carolina Tamayo, Elizabeth Gomes Souza, Alexandrina Monteiro e Margareth Sacramento Rotondo, Giovani Cammarota, Sônia Maria Clareto. Uma política denunciada, caracterizada como uníssona, diante do alinhamento da formação inicial à BNCC e à BNC-Formação (ROTONDO; CAMMAROTA; CLARETO, 2022). Como toda proposta é prescritiva e passível de aposta (KRAMER, 1997), longe dos espaços democráticos de discussão, ela se torna imposta.

O primeiro texto (MIGUEL et al., 2022) propõe uma virada vital-praxiológica de matemáticaS em defesa de uma perspectiva decolonial-indisciplinar de formação de educadores escolares. O que se recomenda é

vê-la [formação] como um conjunto de práticas culturais voltadas a cumprir propósitos comunitários normativos, movendo o olhar para os modos como práticas socioculturais normativas se realizam e se inventam em diferentes formas de vida, tornando-as o alvo da problematização escolar decolonial-indisciplinar e da formação de educadores. (p.12)

Já trouxemos neste artigo nossa defesa de espaços escolares de problematização, de pensar criticamente sobre “aS matemáticaS a serviço de quem?”, como práticas políticas de constituição da identidade profissional do futuro professor.

Pensar e problematizar um currículo para a formação de professores é a proposta do segundo texto.

Um currículo para uma formação se produz como experimento e, com ele, um modelo teleológico é assumido como meta a ser a atingida, então, experimentação certa. Um currículo para uma formação que carrega modos canônicos, hegemônicos, universais, aliados à Moral, à Verdade, ao Bem e ao Belo, no empreendimento do ideal e no controle do existir. (ROTONDO; CAMMAROTA; CLARETO, 2022, p. 1, grifo dos autores).

Uma formação “a que será que se destina? Seria a formação um efeito do currículo ou o currículo o efeito de uma formação?” Os autores “perguntadeiros” problematizam causas e tecem com palavras o cenário político meritocrático, privatizador, produtivista, incoerente (“Direito à aprendizagem” versus “Direito à Educação”), os processos de mercantilização e, porque não dizer, de desprofissionalização, como apontamos em Zeichner e Saul (2014).

As competências e as habilidades voltam à cena. Sempre elas... a constante tradução de competências em ações, habilidades que geram competências e o processo, como sempre, passível de “medição”. Descritores, TRI[7], matriz de referência, quantificação. Estamos prontos a dizer “se esse futuro professor será um bom professor”. Essa é a lógica do produtivismo. A mesma que transforma em números de fracasso e sucesso os estudantes da Educação Básica, que quantifica os cursos de licenciatura, defendendo o discurso da qualidade.

Também a Pedagogia, como lugar de formação de futuros professores que ensinam matemática, constituiu espaço de investigação dos professores pesquisadores progressistas, nossos interlocutores. Com as especificidades na formação do pedagogo, de certa forma generalista, mas que também será um ensinador de matemática, o foco esteve centrado na formação para o ensino de matemática desses pedagogos.

Como prática insubordinada criativamente, Adair Mendes Nacarato e Kátia Gabriela Moreira (2022) analisam as potencialidades da parceria entre elas, ex-professora de Matemática da Educação Básica, primeira autora, com larga experiência em formação de professores, e a professora que ensina matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental, segunda autora, que assumiu o papel da (co)docência (estagiária docente) na construção de diálogos e interlocuções com futuras professoras que ensinarão matemática, em disciplinas da Pedagogia. O texto analisa, em uma perspectiva histórico-cultural, os processos dialógicos no compartilhamento de experiências e aprendizagens que puderam ser analisadas e sistematizadas em três unidades temáticas: “o gosto pela matemática; a importância do conhecimento do professor para o ensino de matemática; e um novo olhar para o ensino de matemática na escola pública” (p.10). Concluem que “os alunos necessitam de práticas emancipadoras que contribuam para uma formação crítica e democrática” (p.19).

As autoras criticam também a lógica da avaliação por competências, principalmente as competências no âmbito da instrumentalização e apontam a necessidade de resistir a ela, questionando o lugar da formação matemática do pedagogo, quando tecem críticas à BNC-formação[8] (p.6):

Embora não seja nosso objetivo analisar o documento, não podemos deixar de destacar o estranhamento da redação do inciso II, do 1º parágrafo do Art.13: “conhecimento da Matemática para instrumentalizar as atividades de conhecimento, produção, interpretação e uso das estatísticas e indicadores educacionais”. Sem dúvida, um reducionismo do papel da Matemática para a formação do professor, desconsiderando seus aspectos epistemológicos e conceituais, situando-a como ferramenta para interpretação de dados estatísticos e indicadores educacionais”.

Por que esse conhecimento matemático e/ou estatístico merece destaque na formação do pedagogo? O quanto a insistência na abordagem desses conteúdos reforça as situações traumáticas e de fracasso nas aulas de matemática da Educação Básica, captadas por meio dos relatos memorialísticos das estudantes da Pedagogia? Tema amplamente debatido na literatura sobre o assunto.

A formação matemática do professor dos anos iniciais do Ensino Fundamental também é foco do texto das autoras Antonia Alves Pereira Silva e Maria Isabel Ramalho Ortigão (2022). Elas defendem que “a formação de professores, em particular no curso de Pedagogia, deve pautar-se nos princípios de unidade teoria e prática, configurada enquanto práxis, e numa perspectiva crítico-emancipatória” (p. 03) A defesa, ao longo do texto, está nas relações teórico-práticas na formação do PEM, com destaque para o lugar da teoria que se considera negligenciado na Resolução n.º 2 (BRASIL, 2019). Uma formação insubordinada criativamente na perspectiva da práxis que “contribui para a reflexão do ser professor e orienta futuros professores a apreender a pensar criticamente, uma perspectiva que tende a ser apagada pelas tentativas de imposição de visões tecnicistas de formação, trazidas nesse ‘novo’ documento legal” (p. 01, grifo das autoras).

Para o curso de Pedagogia, que tem uma tradição histórica no debate sobre a formação ampla, generalista e profissional do pedagogo, o desafio em encontrar brechas possíveis na legislação é sempre maior. Conforme denunciam Silva e Ortigão (2020, p. 111)

A resolução atual reduz a Pedagogia ao ma­gistério ao prever cursos separados para formação docente e para funções de gestão educacional, em contraposição à ideia de uma formação ampla e integrada do pedagogo, formação essa que derivou de uma concepção epistemológica de formação que situa teoria e prática como dimensões unitárias do fazer docente.

Helena de Freitas (2020) tece críticas às reformulações antidemocráticas das diretrizes dos cursos de formação de professores, em especial, dos cursos de Pedagogia, que nos possibilitam compreender como as políticas de formação de professores estão pautadas desde o impeachment da presidenta Dilma Roussef:

setores conservadores e neoliberais presentes no CNE e no governo federal, caminham para a implementação de políticas regressivas que destroem a educação e a escola públicas. Ancoradas em concepções de caráter técnico instrumental e baseadas exclusivamente em competências e habilidades sócio emocionais que visam estreitar a formação dos professores reduzindo-os a meros tutores da BNCC, novos gestores de caráter gerencial e técnicos educacionais passam a ser demandados para lidar com novos materiais didáticos e metodologias de ensino, no contexto de uma pandemia que abre para o capital a malfadada ‘janela de oportunidades’.” (FREITAS, 2020[9], grifo nosso)

Essas análises nos viabilizam identificar um ideário formativo tecnicista que encontra terreno fértil para se estabelecer com o problema mundial que nos impõe a pandemia pelo Covid 19, a partir da desmobilização das sociedades científicas, do isolamento das pessoas e da suspensão temporária de nossas práticas e lutas. Um intervalo histórico de tempo necessário, até que aprendêssemos novas formas de comunicação, de ações educativas, de produção de pesquisas, de interlocução. Um intervalo de luta pela vida, de solidariedade humana, mas que tem nos assustados, quanto ao rápido retrocesso e à aceleração na destruição de conquistas históricas no campo educacional.

No âmbito das licenciaturas que formam o PEM, a resolução n. 2 de 2019, ao assumir a perspectiva de uma formação de professores voltada à BNCC, cria o desafio de se compreender epistemologicamente as relações amplamente discutidas e tensas no âmbito da Educação Matemática entre o conhecimento matemático acadêmico, ou disciplinar, e o conhecimento matemático escolar.

A pesquisa em História da Educação Matemática tem buscado sistematicamente contribuir para esse debate, como o ensaio teórico, produzido por Wagner Rodrigues Valente (2022, p. 01, grifo do autor), que realça “a importância teórica de distinguir ‘ensino de matemática’ e ‘matemática do ensino’, em termos do ensino e da formação de professores”. Para Valente (2022, p. 09), a questão é epistemológica e carece de um deslocamento: “transladar-se do campo disciplinar matemático e postar-se no âmbito da cultura escolar, entendida como espaço descontínuo que reúne o meio escolar, a cultura escolar.” E, assim o desafio passa a ser compreender como a cultura escolar produz uma matemática para o ensino, para a formação de professores (VALENTE, 2022).

As muitas mudanças na legislação de formação de professores, desde a construção das diretrizes nacionais para os cursos de licenciatura que formam o PEM, não têm colaborado em responder à dicotomia entre a matemática acadêmica e a escolar. Embora as pesquisas em Educação Matemática aprofundem essa discussão e a investigação em formação de professores defenda que essa discussão necessita avançar, a fim de que a formação inicial dê conta dos diferentes conhecimentos necessários à profissionalização docente, as dicotomias teoria e prática, matemática acadêmica e escolar, bacharelado e licenciatura, permanecem cristalizadas nos cursos de formação de professores.

Por outro lado, cabe a insubordinação criativa, por meio do movimento sistemático da pesquisa a que Valente (2022, p. 11) faz referência. Concordamos com ele, quando aponta que:

a (des)construção curricular, por certo, não deverá promover uma volta às origens, da reafirmação do campo disciplinar, embatendo-se com a pedagogia das competências. O horizonte das mudanças leva-nos às alterações que já vêm ocorrendo com a produção de novos saberes para o ensino e para a formação de professores, novas matemáticas, matemáticas do ensino.

A Matemática do ensino na Educação de Jovens e Adultos é discutida no texto de Adriano Vargas Freitas, Francisco Josimar Ricardo Xavier e Júlio César de Moura Dias (2022). O artigo contribui com a relevância da “escuta” dos saberes dos estudantes da EJA para a formação do PEM. Defendendo a escuta e o diálogo freirianos, é viável pensar em uma formação “para que os professores construam práticas curriculares mais próximas das realidades dos educandos” (p. 04). O espaço da EJA traz grandes desafios ao professor, sobretudo a uma realidade outra, que pouco abre espaço para um currículo prescritivo. Para essa modalidade de ensino, faz mais sentido pensarmos em desenvolvimento curricular, em uma perspectiva de coparticipação dos jovens, adultos e idosos nos movimentos de letramentos matemáticos e na dimensão política e crítica, ao problematizar práticas e contextos em que a Matemática é utilizada a fim de reforçar desigualdades sociais. O futuro professor que ensina matemática necessita entender a natureza da docência diferenciada, ao se constituir “professor da EJA”. Os autores apontam: “concluímos reforçando a atualidade do pensamento de Paulo Freire, sobretudo quanto ao diálogo para a construção de uma educação crítica, democrática e libertadora.” (p. 01). Essa dimensão política e tão destacada nos estudos freirianos de longe está presente nas normativas da BNC-formação. Isso nos faz pensar... a quem essa legislação está servindo?

RESISTIR, (RE)EXISTIR E ... INSISTIR

Esse conjunto de textos de pesquisa nos possibilita pensar criticamente que precisamos resistir, (re)existir e insistir... Insistir em defesa de nossas vivências, no que sensivelmente experimentamos na formação de professores que ensinam matemática, em nossa pesquisa construída colaborativamente com os professores e futuros professores e encontrar brechas. Construir possibilidades de esgarçamentos, ou mesmo de rupturas ao que é prescrito, ao que é minimizado, reduzido, aligeirado... Somos mais do que as políticas públicas atuais almejam e intencionalmente prescrevem, um projeto político a serviço da privatização da educação e do controle dos educadores – do tempo livre, como lembram Rotondo, Cammarota e Clareto (2022), fazendo referência a Masschelein e Simons (2018). Necessitamos nos insubordinarmos coletiva e criativamente, conforme propõem nossos interlocutores.

Uma forma de resistência no campo formativo é construir Projetos Pedagógicos institucionais (articulando todas as licenciaturas) que deixem explícitos: os princípios de formação; a necessidade de articulação da universidade/IES com a escola, entre a formação inicial e a formação continuada de professores; a valorização da profissionalização docente. Esses projetos podem ser construídos e pensados na articulação com a Educação Básica, de modo a romper com a segmentação com o dualismo (que é falso) de separar quem pensa de quem executa os processos educacionais.

Defendemos a construção de um projeto institucional vivo, que leve em consideração as pessoas (formadores, professores, futuros professores e outros agentes educacionais). Temos que lutar para a formação de um professor pesquisador problematizador, preparado e disposto a compreender a realidade das instituições, das crianças, dos jovens adolescentes, dos adultos e dos idosos, no seu contexto, para que possamos discutir e pôr em prática a concepção de uma educação democrática e inclusiva.

Para além dos conhecimentos matemáticos para o ensino, na formação inicial, é essencial considerar as crenças e as concepções dos futuros professores, articuladas ao seu autoconhecimento profissional, à autonomia (vulnerabilidade e a busca de seu sentido de agência), ao compromisso político, às emoções (empatia), dentre outros aspectos inerentes ao movimento de constituição da identidade profissional (CYRINO, 2017, 2018).

Tornar-se professor representa assumir novas perspectivas sobre si e sobre os outros como produtores do conhecimento e responsáveis por suas aprendizagens. A motivação para o trabalho, as percepções a respeito de suas tarefas e do papel da Matemática e da Educação Matemática, a perspectiva de futuro como professores e suas responsabilidades são fundamentais para o movimento de constituição da identidade profissional do professor que ensina matemática.

A prática do professor em sala de aula é apenas uma parte do trabalho docente. Esse ofício envolve outros aspectos associados ao seu desenvolvimento profissional, nomeadamente a sua carreira, o seu autoconhecimento, as políticas públicas para educação, as práticas concorrentes à sala de aula, as emoções, a empatia, o seu compromisso ético e político.

Na formação, podemos pensar nas demandas colocadas pela sociedade e pelos sistemas educativos em prol da justiça social; atender às necessidades educacionais de nosso momento histórico (respeitando as singularidades e a diversidade); compreender como os futuros professores aprendem e como eles vivem; produzir reflexões em torno dos conhecimentos e requisitos necessários para o professor no exercício de sua atividade profissional.

Novamente... precisamos INSISTIR ... “seríamos todos muito mais bem-sucedidos em nossas lutas para acabar com racismo, machismo e exploração de classe se tivéssemos aprendido que a libertação é um processo contínuo” (bell hooks, 2020, p.57) e se tivéssemos aprendido a EXISTIR por um coletivo que não se cala.

REFERÊNCIAS

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Notas

[2] Nome em letra minúscula por escolha da autora.
[3] PEM: Professor que ensina matemática.
[4] Proposta Pedagógica Curricular
[5] Licenciatura em Matemática
[6] Identidade Profissional
[7] Teoria de Resposta ao Ítem
[8] Resolução n.º. 2 de 20 de dezembro de 2019.
[9] Blog Helena de Freitas. Disponível em: https://formacaoprofessor.com/author/helenafreitas/Acesso em: 27 set. 2021.

Autor notes

* Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Titular da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, Paraná, Brasil. Endereço para correspondência: Rua Caracas, 377, apto 2103, Santa Rosa, Londrina, Paraná, Brasil, CEP: 86050-070.
** Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora Titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Endereço para correspondência: Rua/Expedicionário Ivo Napoleão, 521, Campeche, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, CEP: 88065-380.

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