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A formação compartilhada do futuro professor que ensinará matemática: contrapontos à BNC-formação

The shared education of the future teacher who will teach mathematics: counterpoints to BNC-Education

La formación compartida del futuro profesor que enseñará matemáticas: contrapuntos a la BNC-formación

Adair Mendes Nacarato *
Universidade São Francisco, Brasil
Kátia Gabriela Moreira **
Secretaria Municipal de Educação de Campinas, Brasil

Revista de Educação Matemática

Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil

ISSN: 2526-9062

ISSN-e: 1676-8868

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 19, e022005, 2022

sbem.sp.revista@gmail.com

Recepção: 08 Janeiro 2022

Aprovação: 14 Fevereiro 2022

Publicado: 08 Março 2022



DOI: https://doi.org/10.37001/remat25269062v19id731

Resumo: O presente texto centra-se na análise de uma parceria estabelecida entre a formadora do curso de Pedagogia e sua orientanda, professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental, que possibilitou uma formação compartilhada para as práticas de ensino de Matemática. Tem como objetivo apontar indícios de como essa parceria possibilitou aprendizagens aos futuros professores. A análise, centrada nas narrativas produzidas pelos graduandos ao final do curso, pautou-se em três unidades temáticas que emergiram dos textos: o desenvolvimento do gosto pela Matemática; a importância do conhecimento do professor para o ensino de Matemática; um novo olhar para o ensino de Matemática na escola pública. Os resultados apontam indícios de como os futuros professores se apropriaram de alguns princípios que nortearam as práticas das formadoras e construíram consciência de que a formação não se esgota na graduação e requer um repertório de saberes para o exercício da docência visando a tornar a Matemática acessível e prazerosa a todos os alunos.

Palavras-chave: Curso de Pedagogia, Práticas compartilhadas, Estágio docente, Ensino de Matemática.

Abstract: This text focuses on the analysis of a partnership established between the teacher of the Pedagogy course and her advisee, a teacher in the early years of primary school, which enabled a shared education for the teaching practices of mathematics. Its objective is to point out indications of how this partnership enabled future teachers to learn. The analysis, centered on the narratives produced by undergraduates at the end of the course, was based on three thematic units that emerged from the texts: developing a taste for mathematics; the importance of teacher knowledge for teaching mathematics; a new look at the teaching of mathematics in public school. The results point to indications of how future teachers appropriated some principles that guided the teacher educators and built awareness that education is not limited to graduation and requires a repertoire of knowledge for teaching practice in order to make mathematics accessible and enjoyable to all students.

Keywords: Pedagogy Course, Shared practices, Teaching internship, Teaching mathematics.

Resumen: Este texto se centra en el análisis de una alianza establecida entre la profesora del curso de Pedagogía y su asesora, una profesora en los primeros años de la escuela primaria, que posibilitó una formación compartida para las prácticas docentes de la matemática. Su objetivo es señalar indicios de cómo esta alianza permitió aprender a los futuros profesores. El análisis, centrado en las narrativas producidas por los estudiantes al final del curso, se basó en tres unidades temáticas que surgieron de los textos: desarrollar el gusto por las matemáticas; la importancia del conocimiento del docente para la enseñanza de las matemáticas; una nueva mirada a la enseñanza de las matemáticas en la escuela pública. Los resultados apuntan a indicios de cómo los futuros profesores se apropiaron de algunos principios que guiaron las prácticas de los formadores y crearon conciencia de que la formación no se limita a la graduación y requiere un repertorio de conocimientos para la práctica docente con el fin de hacer las matemáticas accesibles y agradables para todos los estudiantes.

No novo tempo Apesar dos castigos Estamos em cena Estamos na rua Quebrando as algemas Pra nos socorrer

(LINS, 1980)

Para Iniciar...

Em tempos de tanta desesperança, de tanto desmonte da educação brasileira, não podemos sair de cena. É tempo de continuarmos lutando por uma educação pública igualitária e equitativa a todas as crianças e jovens de nosso país. E nossa luta começa pela formação do professor. Após tantas décadas de reivindicações de novos modelos de formação docente, que reconheçam o protagonismo dos professores, que os legitimem como produtores de saberes, fomos mais uma vez surpreendidos com políticas públicas que atrelam a formação a interesses de ideologia empresarial e neoliberal.

Referimo-nos à Resolução CNE/CP n.o 2, de 20 de dezembro de 2019, que define as Diretrizes Curriculares para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). No caput da referida Resolução, consta que ela se apoia no parágrafo 8º do art.62 da LDB (Lei 9.394/96); ocorre que esse artigo 62 foi alterado em relação à versão original de 1996, com a inclusão desse parágrafo, em 2016: “§ 8º Os currículos dos cursos de formação de docentes terão por referência a Base Nacional Comum Curricular.” (BRASIL, 2020). Esse acréscimo foi feito com a ressalva de que ele deveria ser implementado no prazo de 2 anos contados a partir da publicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Ora, a própria aprovação da BNCC gerou desconfortos na comunidade educacional brasileira, visto que ela busca uma padronização a partir do conceito de competências. Segundo Venco e Carneiro (2018, p.9), “é possível afirmar que o padrão de competências assume um caráter científico, mas atende diretamente aos interesses do atual estágio do capitalismo.” Trata-se de competências voltadas para a melhoria dos índices de desempenho dos alunos nas avaliações externas, ou seja, estabelece-se padrões que podem ser mensurados. A BNCC, ao adotar as competências como eixo articulador do documento, desconsidera as discussões que vinham sendo realizadas sobre os direitos de aprendizagem de crianças e jovens (PASSOS; NACARATO, 2018).

O ano de 2019 foi decisivo para municípios e instituições de Educação Básica se organizarem para alinharem seus currículos à BNCC para serem implementados em 2020. A publicação da Resolução CNE/CP n.o 2 ocorreu no apagar das luzes do ano de 2019. A comunidade educacional se viu pressionada, de um lado, a estabelecer parcerias com professores para discussão da BNCC, de modo a não engessar o trabalho do professor e, de outro, os cursos de licenciatura deveriam atender a BNC-Formação. É importante ressaltar que muitas Instituições de Ensino Superior (IES) estavam em fase de implementação das diretrizes publicadas em 2015, Resolução n.º 2, de 1º de julho de 2015. Tal resolução fazia alusão à base comum nacional para formação de professores, sem, no entanto, estabelecer relações com documentos curriculares para a Educação Básica e utilizar conceitos de competências. Em 2015, iniciavam-se as discussões para elaboração da BNCC.

Começamos o ano de 2020 com as incertezas de como a BNCC impactaria as práticas dos professores e, paralelo a isso, nas licenciaturas, de como as instituições se organizariam para a implementação da BNC-Formação. No entanto, a pandemia que assolou o mundo a partir de março desse ano gerou mais incertezas e angústias a todos os setores da educação, pandemia essa que atravessou o ano de 2020 e o primeiro semestre de 2021. O retorno no segundo semestre foi parcial, e a expectativa é de volta às aulas presenciais em 2022. Por ora, não temos certeza de nada; no entanto, não há como sair de cena, é momento de (re)existência e resistência nas diferentes esferas de atuação profissional. Os desafios são grandes. Mas “estamos em cena, estamos na rua”. O debate acadêmico tem que continuar com força, mostrando contrapontos e boas experiências de formação, que podem resistir a essa avalanche padronizadora, tanto na formação docente quanto nas práticas dos professores.

Como contraponto, amparadas pelos resultados de pesquisas que apontam para outras possibilidades e concepções de formação docente, propomo-nos neste texto a apresentar e analisar um modo de formação inicial de professores que ensinarão Matemática num curso de Pedagogia. Nosso foco será nos resultados de uma parceria estabelecida entre orientadora e orientanda, que, em cumprimento do Estágio Docente como doutoranda na Pós-Graduação, participou ativamente de três disciplinas no curso de Pedagogia: Didática, Fundamentos Metodológicos do Ensino de Matemática I e II. A parceria possibilitou novos olhares para a formação, visto que a doutoranda atuava como professora dos anos iniciais numa escola pública municipal e, ao trazer para a sala de aula da universidade dados de sua prática docente, contribuiu para a formação de futuros professores.

Nosso objetivo é apontar indícios de como essa parceria possibilitou aprendizagens aos futuros professores. O texto está organizado em quatro seções. Inicialmente apresentamos algumas reflexões sobre a formação de professores no atual contexto, diante das prescrições oriundas do Ministério da Educação. Na sequência, descrevemos como foi a parceria estabelecida e o papel das formadoras nas disciplinas ministradas. Depois, apresentamos a análise de excertos de narrativas dos graduandos. Em nossas considerações finais, destacamos as aprendizagens no processo.

A formação do professor que atua nos anos iniciais do Ensino Fundamental: qual formação inicial?

A formação do professor que atua na Educação Infantil e nos anos iniciais tem sido objeto de muitas pesquisas e discussões. Isso porque há muitas particularidades nela. Trata-se de um docente polivalente que ministra diferentes componentes curriculares e tem uma formação acadêmica bastante generalista. Acrescentemos a isso o fato de que muitos desses graduandos não tiveram uma boa relação com a Matemática durante a escolarização básica (NACARATO, 2021). Esses graduandos, em sua maioria, são jovens na faixa etária de 18 a 25 anos, recém-egressos do Ensino Médio. No caso particular deste estudo, são graduandos numa instituição privada; muitos são bolsistas por ações afirmativas e, quase em sua totalidade, cursaram a Educação Básica em escolas públicas. Assim, os desafios para os professores formadores são enormes. Trata-se de, num período de quatro anos, garantir a formação básica desse futuro professor, possibilitando a construção de um repertório mínimo de saberes para o exercício da profissão.

A esses desafios, acrescentam-se aqueles que advêm das políticas públicas. A formação tem sido objeto de interesse na contemporaneidade. E de onde vem essa centralidade nos professores? Nóvoa (1999, p. 14, grifos do autor), há mais de 20 anos, já nos chamava a atenção para essa centralidade, ou “mercado da formação”. Podemos dizer que esse “mercado da formação” ampliou muito nos últimos anos, dada a grande inserção de grupos empresariais e setores privados na produção de documentos e políticas educacionais. A interferência desses grupos se fez notar na elaboração da BNCC, como analisam Passos e Nacarato (2018) e Venco e Carneiro (2018), e, mais particularmente, na BNC-Formação. Ora, as IES estavam no movimento de implementação das Diretrizes de 2015, consideradas pelos educadores brasileiros como um avanço em termos de formação docente. Silva e Ortigão (2020, p. 99) analisam esses avanços e afirmam que essa Resolução “apresenta uma concepção de educação como sendo um processo amplo, formativo e emancipatório, que se desenvolve nos diversos espaços sociais de forma inter-relacionada.” Dois pontos eram considerados inovadores: a concepção integrada da formação inicial com a continuada e a articulação da formação com a carreira docente. No entanto, essa Resolução encontrou muitos obstáculos em sua implementação, em virtude do movimento ocorrido no país após o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, o qual rompeu com as discussões democráticas que vinham ocorrendo; em tempo recorde, foram aprovadas a BNCC e a BNC-Formação, sem que a comunidade educacional participasse de suas elaborações.

Ao final de 2019, os educadores foram surpreendidos com a publicação da BNC-Formação. O documento pressupõe que a formação docente desenvolva no futuro professor as competências gerais previstas na BNCC da Educação Básica, competências essas criticadas pelos pesquisadores, pois esses princípios vão na contramão da formação defendida pela comunidade. O conceito de competências começou a veicular no Brasil no período de elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Esse conceito foi importado do setor empresarial. Essa lógica que orientou os PCN do Ensino Médio, na década de 1990, após a ruptura das discussões democráticas em 2016, passou a orientar a elaboração da BNCC e, posteriormente, da BNC-Formação. Seus efeitos na formação docente são considerados perversos, como analisam Silva e Ortigão (2020, p. 111-112): “Assim, a BNC-Formação representa, a nosso ver, um retrocesso e um ataque brutal ao curso de Pedagogia, à sua história e às suas diretrizes, construídas de forma democrática e participativa. Representa ainda um ataque às práticas formativas que vêm sendo realizadas País afora e que visam a contribuir para a formação de um profissional com visão crítica da Educação.”

Embora não seja nosso objetivo analisar o documento, não podemos deixar de destacar o estranhamento da redação do inciso II, do 1º parágrafo do Art.13: “conhecimento da Matemática para instrumentalizar as atividades de conhecimento, produção, interpretação e uso das estatísticas e indicadores educacionais.” Sem dúvida, há um reducionismo do papel da Matemática para a formação do professor, desconsidera-se seus aspectos epistemológicos e conceituais, situando-a como ferramenta para interpretação de dados estatísticos e indicadores educacionais. Os indicadores das avaliações externas? Ora, se as habilidades da BNCC nada mais são do que descritores de avaliações externas (PASSOS; NACARATO, 2018), então a formação inicial precisa ajustar o futuro professor a essa lógica avaliativa, sem levar em conta a importância da formação matemática desse profissional. É contra essa lógica que temos que resistir.

Em se tratando de um curso de Pedagogia, a formação matemática do futuro professor que atuará na Educação Infantil e nos anos iniciais é um grande desafio, pois os graduandos, em sua maioria, são confrontados com uma abordagem para o ensino de Matemática que se contrapõe àquele que vivenciaram na Educação Básica. Isso gera um desconforto e a insegurança de não ter domínio para trabalhar com seus alunos. Acrescentemos a isso que, por não terem vivenciado tais práticas como alunos ou como estagiários em sala de aula da escola pública, esses graduandos não acreditam que é possível desenvolver práticas investigativas e problematizadoras nas aulas de Matemática.

Defendemos, pois, uma formação acadêmica pautada no compromisso ético e responsável, construindo um repertório de saberes com o futuro professor, pautado na reflexão e na investigação. Que o futuro professor saiba acolher seus alunos, colocar-se à escuta atenta de seus (não) saberes, promovendo uma formação matemática pautada na justiça social e na equidade, como forma de ruptura com as desigualdades estruturais da nossa sociedade, uma formação humana que se contraponha à lógica das competências, pautada na reflexão e no diálogo.

[...] o diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O diálogo é o momento em que os humanos se encontram para refletir sobre sua realidade tal como a fazem e re-fazem. [...] nós, seres humanos, sabemos que sabemos, e sabemos também que não sabemos. Através do diálogo, refletindo juntos sobre o que sabemos e não sabemos, podemos, a seguir, atuar criticamente para transformar a realidade. (FREIRE; SHOR, 2008, p. 123)

A possibilidade de uma formação pautada no diálogo foi o que nos moveu para atuarmos, em parceria, num curso de Pedagogia. Na próxima seção, descrevemos como essa parceria aconteceu.

A formação compartilhada num curso de Pedagogia: a parceria entre orientadora e orientanda

A parceria foi estabelecida a partir do segundo semestre de 2017, com o início do Estágio Docente (exigência para bolsista de doutorado), na disciplina de Didática do curso de Pedagogia. Como a orientanda é professora da escola pública, nos anos iniciais, partimos do pressuposto de que ela poderia contribuir com o desenvolvimento da disciplina a partir do compartilhamento de sua prática de sala de aula, possibilitando o estabelecimento de relações importantes entre a teoria e a prática. Por isso, o plano de trabalho foi traçado de modo que a estagiária realizasse o acompanhamento das aulas e das atividades de avaliação a serem desenvolvidas ao longo do semestre, participasse da elaboração do planejamento das aulas e atividades que seriam desenvolvidas com os alunos, auxiliasse a docente nas atividades desenvolvidas em sala de aula, apoiasse os alunos na elaboração das atividades propostas, apresentasse relatos de experiências da prática pedagógica e participasse dos debates em sala de aula. A partir das escolhas dos textos teóricos dessa disciplina, selecionamos alguns vídeos, fotos e registros produzidos pela estagiária em sua sala de aula dos anos iniciais para serem compartilhados com os graduandos no momento de discussão sobre os elementos teóricos.

A abordagem teórica histórico-cultural era privilegiada na disciplina; portanto, muito se discutia sobre a importância da palavra, da mediação, da aprendizagem colaborativa, do processo de elaboração conceitual, entre outros princípios importantes da teoria. A ampla experiência da docente responsável pela disciplina, possibilitou tanto aos graduandos quanto à estagiária, o contato com uma ação pedagógica na graduação que estava de acordo os constructos teóricos adotados, no qual se valorizava a elaboração conceitual, a troca entre os pares, o processo de significação e ressignificação dos discursos por meio de uma prática que colocava os graduandos em movimento de pensar, comunicar e refletir acerca dos conceitos. Para isso, pautou-se em um trabalho pedagógico intencional, marcado pela possibilidade das trocas entre o grupo, problematizações, socialização e sistematização dos conteúdos.

As aulas sempre eram organizadas de modo a colocar os discentes no movimento de pensar sobre os conceitos abordados pelos autores dos textos teóricos lidos previamente. Para isso, eram priorizados os trabalhos em grupos, em que se podia trocar ideias, levantar hipóteses e resolver problemas, que seriam socializados num segundo momento, em que cada grupo compartilharia suas construções. Esses eram momentos em que muitos saberes emergiam a partir das trocas. À medida que os alunos se apropriavam dessa prática, cada vez mais se envolviam nas discussões, levantando hipóteses, questões e críticas que colaboravam para o entendimento das ideias centrais dos textos teóricos. Para finalizar esse momento, os conceitos eram sistematizados pela docente e recebiam contribuições da estagiária.

Se, de um lado, os textos teóricos apresentavam conceitos importantes para os alunos no momento da leitura, muitos deles necessitavam de problematizações e sistematizações nas discussões de sala de aula para que houvesse uma maior apropriação por parte dos graduandos — a ampla experiência da docente responsável pela turma favorecia esse processo —, de outro, as vivências de sala de aula apresentadas pela estagiária colaboravam com a reflexão de como os elementos conceituais poderiam ser apropriados para uma prática de sala de aula. A partir dessa interação, foi possível perceber que a iniciativa de trazer a realidade do contexto escolar para dialogar com os textos teóricos e as reflexões dos alunos tornou as aulas mais significativas.

Ao final do semestre, orientadora e orientanda fizeram uma avaliação do trabalho e identificaram os pontos favoráveis da parceria firmada. A docente entendia que seu trabalho foi favorecido com as possibilidades de estabelecimento de relações entre a teoria e a prática a partir da experiência de sala de aula apresentada pela estagiária. A estagiária, por sua vez, considerou as aprendizagens adquiridas ao longo do semestre diante do fazer docente no Ensino Superior. Dessa avaliação, surgiu a ideia da continuidade da presença da estagiária nas disciplinas Fundamentos e Metodologia do Ensino da Matemática I e II, a serem desenvolvidas no primeiro e no segundo semestre de 2018, desta vez, em caráter voluntário, de modo que se ampliasse a participação no compartilhamento da prática de sala de aula, uma vez que as próximas disciplinas, vinculadas à metodologia e prática da Matemática nos anos iniciais, possibilitavam uma abertura ainda maior para esses compartilhamentos, dados os elementos conceituais abordados nelas.

A parceria nessas duas disciplinas foi o ponto alto da formação compartilhada. Isso porque, como já apontado em outros momentos e pesquisas, nem todos os graduandos vivenciaram experiências positivas com a Matemática, e as marcas negativas e a não vivência de práticas diferenciadas colocavam esses estudantes em situação de descrédito com as possibilidades de ensinar Matemática na infância com situações problematizadoras em um ambiente de aprendizagem pautado no diálogo. Práticas como ler e escrever nas aulas de Matemática, utilizar jogos e materiais manipuláveis como dispositivos mediadores de elaboração conceitual, trabalhar em grupos e compartilhar estratégias de resolução de problemas não produziam sentidos num primeiro momento para esses futuros professores.

No entanto, como o planejamento foi construído de forma colaborativa, a cada temática a ser discutida do ponto de vista metodológico ou a cada conceito matemático a ser explorado, a estagiária, professora da escola pública, desenvolvia propostas com seus alunos e registrava esses momentos em vídeos ou levava suas narrativas e os registros dos alunos para serem compartilhados com os graduandos. Esses eram momentos de muito interesse e participação dos discentes, que questionavam a professora, solicitavam novas explicações de como poderiam proceder em determinadas situações e indagavam sobre como ela agia diante dos currículos prescritos pela secretaria de educação. À medida que o ano avançava, eles se apropriavam de novas possibilidades para ensinar Matemática. Acrescentemos a isso que muitos textos propostos para leitura, discussão e produção do fichamento eram narrativas pedagógicas de professores da Educação Infantil e dos anos iniciais. E algumas dessas narrativas eram da própria estagiária, visto que essa é uma prática nos grupos de pesquisa que temos na universidade (o Grupo Colaborativo em Matemática, que reúne professores da Educação Básica, da Educação Infantil ao Ensino Médio, e o Programa Observatório da Educação, do qual a estagiária participava, primeiro, como mestranda e, depois, como professora da escola pública).

Ao final do ano, solicitamos aos graduandos que produzissem narrativas sobre as aulas que vivenciaram no estágio, como observação ou regência, bem como narrassem suas aprendizagens sobre a Matemática durante o curso das duas disciplinas e como eles se projetavam como professores que ensinariam Matemática. Esse é o material empírico que analisamos no presente texto. Vale acrescentar que toda essa produção dos alunos (a turma contava com 57 alunos), além dos memoriais de formação e da elaboração de sequências de tarefas para a sala de aula, era organizada em portfólios. Na próxima seção, analisamos os excertos das narrativas.

“Não gostaria de fazer com meus futuros alunos o que meus professores fizeram comigo”: a formação compartilhada produzindo sentidos para ensinar matemática

Uma leitura inicial do material selecionado para análise possibilitou a identificação de três unidades temáticas. São elas: o desenvolvimento do gosto pela Matemática; a importância do conhecimento do professor para o ensino de Matemática; e um novo olhar para o ensino de Matemática na escola pública.

O desenvolvimento do gosto pela Matemática

Os alunos chegam à universidade com muitas marcas da escolarização, sobretudo, chegam fugindo da Matemática, com medo de ser professores que ensinarão Matemática. Logo, ao mesmo passo em que se faz necessário o rompimento com as barreiras impostas pelo deficitário processo de escolarização dos graduandos, há que se trabalhar com os fundamentos, os conteúdos e a metodologia que envolvem o ensino e a aprendizagem da Matemática. De acordo com Cyrino (2017), o professor que cada um é ou que irá se tornar, não depende, simplesmente, de conhecimentos didáticos e matemáticos, mas também de uma transformação pessoal, a partir de sua biografia, de suas crenças e concepções, bem como das várias experiências formativas. Tudo isso constitui-se no desenvolvimento profissional do professor que ensinará Matemática.

O primeiro passo para um ensino significativo é favorecer o desenvolvimento do “gosto” pelo conhecimento matemático. Há que se pensar na ruptura com os medos e as crenças construídos ao longo da escolarização; por isso, faz-se necessária uma prática que possibilite ao futuro professor a (re)significação da Matemática, o “apaixonar-se” pelo objeto do conhecimento. Um primeiro movimento nesse sentido é trabalhar com as narrativas de escolarização (NACARATO, 2021), inseridas no memorial de formação. Na produção dessas narrativas, os graduandos refletem sobre a relação estabelecida com a matemática, como escreveu Talita:

Bem, eu escrevi isso no meu memorial, eu ainda não consigo me ver como professora de matemática[1]. Eu sinto muita insegurança para ensinar essa matéria. Acredito que com a prática isso melhore, pelo menos é o que eu espero. A matéria da matemática é um empecilho para que eu consiga ser professora do Ensino Fundamental. Eu ainda sinto muita dificuldade de desconstruir o que eu aprendi ao longo dos meus 35 anos e construir essa forma nova de ensino e, diante do meu estágio, percebo que muitas professoras ainda ensinam do “modo antigo”.[2]

Não se sentir segura para a docência é um processo natural quando ainda se cursa a graduação; é um misto de insegurança e incerteza, principalmente quando as práticas vivenciadas no estágio reforçam as vivenciadas quando estudantes, pois, ao se referir a ensinar do “modo antigo”, Talita faz referência às aulas de Estágio Supervisionado que acompanhou nesse período. É fundamental que o professor tenha uma relação prazerosa com as disciplinas que ministrará e que a Matemática seja encarada como uma disciplina que faz parte do currículo dos anos iniciais e, portanto, não como empecilho para o exercício da docência. Há esperança nos dizeres de Talita, assim como na narrativa de Sara: “Ainda não me sinto completamente segura para isso, mas, com toda certeza, tudo que aprendi no decorrer desses 2 semestres foi essencial para que eu enxergasse a matemática com outros olhos, e que eu visse a importância disso para minha prática docente.”

Acreditamos que o compartilhamento da prática de uma professora da escola pública com os graduandos foi essencial para que houvesse uma mudança no olhar para com a Matemática e até mesmo a manifestação de carinho, como expressou Irene: “Também tenho mais carinho com a matemática e aprendi que não é difícil como parece. Basta saber trabalhar da melhor forma.” A própria Irene relatou o que seria saber trabalhar da melhor forma:

Eu me vejo confiante e com muitos desafios a seguir, saber ouvir o aluno, ter um plano elaborado e organizado, entender que cada aluno tem um ritmo e carrega história única, hoje percebo que existem diversas maneiras de ensinar matemática e saber usar essas ferramentas auxilia os alunos, a didática do professor [...]. A troca de ideias tanto com os alunos quanto com os colegas é peça importante para compreender a sua prática, refletir sobre quais caminhos seguir e, se necessário, mudá-los.

Os princípios aqui defendidos por Irene são os que trabalhamos nas três disciplinas com essa turma, quando nos apoiamos na perspectiva histórico-cultural: a intencionalidade da prática e o respeito aos (não)saberes do aluno. Esse depoimento aproxima-se da ideia de Sforni (2015, p.383) sobre a zona de desenvolvimento proximal da turma, ou seja,

identificar os conhecimentos e capacidades que são comuns à turma, as aprendizagens que, de modo geral, já estão consolidadas e as que merecem investimento. O desenvolvimento de cada criança [pessoa] ocorre de forma singular, no entanto, há traços comuns entre estudantes de uma mesma sala de aula, seja porque participaram de situações sociais de desenvolvimento semelhantes, seja porque frequentaram a mesma sala de aula, a mesma escola, seja ainda porque participaram ou participam da mesma comunidade.

Irene nos mostra indícios de que se apropriou de princípios dessa perspectiva teórica e refletiu sobre eles na produção de sua narrativa; revela-nos que a sala de aula é marcada pela imprevisibilidade e que o planejamento do professor não pode ser fixo nem se basear em competências pré-estabelecidas e prescritas por documentos curriculares. Cada sala de aula é única, e o comprometimento do professor precisa ser com a aprendizagem de todos. Para isso, é fundamental que os docentes conheçam seus alunos. Havia a preocupação das formadoras em conhecer quem eram esses graduandos, como chegaram ao Ensino Superior e como se relacionavam com as temáticas discutidas em sala de aula. Ao proceder assim, as formadoras contribuíram para que eles também projetassem práticas de valorização e respeito aos saberes dos alunos. Constituímo-nos nas relações sociais, e o outro desempenha papel central em nosso desenvolvimento, como afirma Smolka (2000, p. 30, grifo da autora): “não é o que o indivíduo é, a priori, o que explica seus modos de se relacionar com os outros, mas são as relações sociais nas quais ele está envolvido que podem explicar seus modos de ser, de agir, de pensar, de relacionar-se.” Assim, é fundamental que, na formação acadêmica, ele seja confrontado com diferentes possibilidades para sua prática futura.

Mesmo os graduandos assumindo as inseguranças para ensinar Matemática, identificamos em suas narrativas a esperança de possibilitarem a seus alunos uma Matemática com significados. Nela, a voz do aluno, os registros, os compartilhamentos de ideias, o lúdico e a problematização são caminhos para a elaboração conceitual.

A importância do conhecimento do professor para o ensino de Matemática

Para que um professor contribua com a aprendizagem significativa da Matemática de seus alunos, há que se ter, inicialmente, um conhecimento especializado. O domínio de um conhecimento específico do conteúdo e de um conhecimento pedagógico do conteúdo relaciona-se à potencialidade do trabalho com os elementos conceituais da Matemática e é intrínseco à aprendizagem dos alunos. Quanto mais conhecimento por parte do professor, mais se favorece o processo dos alunos. É fundamental que a graduação contribua para os processos referentes ao desenvolvimento do conhecimento especializado do (futuro) professor. Para essas reflexões, apoiamo-nos nos estudos de Ball, Thames e Phelps (2008) sobre os conhecimentos necessários ao futuro professor.

Os relatos de alguns alunos apontam para indícios de que a disciplina contribuiu para reflexões sobre a importância do conhecimento especializado do professor para o ensino da Matemática. Essa reflexão fez com que os graduandos tivessem um olhar retrospectivo para as vivências no período de escolarização, como é o caso de Telma:

Me vejo como uma professora que precisa estudar bastante [...]. Pois a disciplina de matemática sempre foi algo que me causava medo e insegurança, porém no caminho dessa disciplina pude perceber o quanto minhas aprendizagens com relação ao tempo de escola não têm significado. Mas com a ação de reflexão e de autoavaliação do meu trabalho posso me adaptar, inventar e enxergar novos caminhos.

Do mesmo modo, as reflexões favorecidas pela disciplina, fomentaram a necessidade do aprofundamento teórico e da formação continuada do (futuro) professor, uma vez que a disciplina se constitui um espaço limitado e, embora favoreça a aproximação dos graduandos com o conhecimento matemático e os saberes pedagógicos, esta é insuficiente para o trabalho significativo com os alunos. Eunice apontou para a relevância de estudar mais a teoria: “necessito de um estudo para além da sala de aula, para me sentir segura e não reproduzir o ensino mecânico ao qual fui submetida.” A discente destacou, ainda, a limitação do tempo destinado à disciplina de Matemática na graduação: “Gostaria que houvesse mais tempo destinado à matemática, pois, quanto mais compartilhamos em sala e lemos os textos, mais eu percebo que necessito aprender.”

A narrativa de Alessandra também sinalizou essas questões:

No meu caso, poderia existir “Fundamentos e metodologia do Ensino da matemática III e IV”, já que no decorrer das disciplinas, pude perceber que me esqueci de coisas simples acerca dessa matéria, como também aprender maneiras diferentes para ensinar meus futuros alunos. Me vejo como uma professora que precisará recorrer a vários cursos, pós-graduação de Matemática, pois ainda não me sinto pronta para lecionar essas disciplinas, ainda mais no Ensino Fundamental, não gostaria de fazer com meus futuros alunos o que meus professores fizeram comigo.

Alessandra sublinhou o esquecimento de “coisas simples acerca dessa matéria” apontando para uma realidade comum aos estudantes de Pedagogia, que, em sua maioria, chegam à graduação com muitas lacunas no que diz respeito aos elementos conceituais da Matemática a que tiveram acesso ao longo do processo de escolarização, revelando omissões a serem superadas. Para que pensar em um conhecimento específico do conteúdo, há que se retomar alguns elementos importantes, e, mais que isso, há que se romper barreiras importantes (a exemplo do medo e da insegurança), para que favorecer a aprendizagem e o desenvolvimento dos graduandos.

Tanto Eunice quanto Alessandra desvelam em suas narrativas um aspecto importante: o movimento de “despertar” para qual o “tipo” de professora que projetavam ser no futuro, de modo que pudessem fugir daquele modelo de ensino ao qual foram submetidas em seus processos de escolarização. O compromisso com a profissão e a responsabilidade com um ensino diferente do que foi vivenciado também apareceu no relato de Juliana: “[...] me sinto mais segura para trabalhar com a educação infantil, suas aulas foram ótimas aprendi muita coisa que não fazia o menor sentido para mim, mas para ensinar nos anos iniciais do fundamental pretendo me preparar melhor, pois não quero dar aos meus alunos o mesmo ensino que tive.”

O conhecimento especializado do (futuro) professor que ensina(rá) Matemática, envolve, além do conhecer o conteúdo matemático e o pedagógico, a aproximação da realidade e das vivências dos alunos, de modo que se tenha acesso ao nível de desenvolvimento real e potencial para que as ações do docente antecipem o que os educandos pensam, para que se intervenha em suas dificuldades e se leve em consideração suas motivações e seus interesses. Telma aponta indícios da aprendizagem desses aspectos:

[...] nessa disciplina pude perceber que devo levar em consideração o que o aluno possui de bagagem, pois o meio em que o aluno vive influencia muito, [devo] procurar entender a sua realidade e forma de pensar. Destaco também que a prática em sala de aula deve trazer significado aos alunos, fazer sentido para o mesmo. E por fim que o planejamento e o diagnóstico do trabalho profissional são de grande importância para um bom exercício da profissão.

Entendemos que a parceria firmada entre docente e estagiária, vislumbrando um diálogo entre campos de discussão diferentes (Educação, Pedagogia e Matemática), favoreceu a diminuição de lacunas na formação do (futuro)professor. Isso se fez presente nas palavras de Sara: “[...] é sempre muito bom quando podemos unir a teoria à prática, pois compreendemos a importância dos dois andarem juntos.” Juliana também evidenciou potencialidades da parceria firmada: “Todos os relatos e textos da Kátia foram muito ricos em vários aspectos, por exemplo, como a mediação é importante para o processo de aprendizagem. [...] Exemplificou como é o cotidiano e como ela os [os alunos] auxilia a chegar a conclusões.”

Além disso, muitos estudantes não atuam no ambiente escolar. Portanto, a única referência de escola e processos de ensino que possuem é o período em que vivenciaram escolarização. E isso potencializou a importância da parceria firmada. Eunice apontou indícios disso: “não trabalho em escola, apenas tive vivências em estágio obrigatório, logo foi bastante significativo ter um professor atuante no Ensino Fundamental, pois me aproximou da realidade escolar através de seus exemplos [...].”

No que diz respeito ao conhecimento especializado do conteúdo, as narrativas realçaram aprendizagens importantes referentes a aspectos do ensino que, muitas vezes, são negligenciados por práticas tradicionais, a exemplo dos elementos conceituais envolvendo a Geometria e a utilização de recursos didáticos (calculadora, jogos e materiais manipuláveis), como apontaram as narrativas de Brígida e Eunice:

Eu, como futura professora, quero aplicar para meus alunos, todas as aulas práticas que pratiquei nessa disciplina, a importância da geometria que faz baita diferença na vida da criança, o uso da calculadora que nem imaginava que faz tanta diferença na vida da criança, o uso dos materiais tangram e outros. (Brígida)

Com toda certeza levarei materiais manipuláveis quando estiver atuando na área. Outro ponto que marcou foi a importância dos jogos, a valorização do registro, o uso da calculadora como ferramenta pedagógica e a importância de trabalhar o vocabulário matemático. (Eunice)

Entendemos esses relatos como projeções para o futuro quando esses graduandos estiverem em sala de aula. No entanto, sabemos que muitos serão os desafios que enfrentarão em início de carreira, e muitos professores ingressantes acabam se sentindo sozinhos no cotidiano da escola e não conseguem colocar em prática seus ideais, construídos ao longo da graduação. A formação acadêmica não é suficiente para garantir que esses futuros professores tenham práticas diferenciadas daquelas que vivenciaram; no entanto, essa foi a aposta das formadoras: possibilitar novos modos de ensinar Matemática.

Um novo olhar para o ensino de Matemática na escola pública

Há, no contexto da graduação, a concepção equivocada de que tudo é possível numa escola privada e pouco se pode fazer numa escola pública. Consideramos que a maior contribuição da parceria estabelecida para esse grupo foi a compreensão de que é possível ter práticas diferenciadas na escola pública, acreditar na capacidade dos alunos, colocar-se à escuta deles e valorizar os conhecimentos que os estudantes levam para a escola e o quanto eles são capazes de raciocinar, argumentar e compartilhar ideias matemáticas.

Como esses graduandos, na época da produção dessas narrativas, já tinham realizado os estágios na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, eles comparavam as aulas da universidade com as das escolas onde realizaram os estágios. Muitos deles ouviam a célebre frase, bastante comum nos discursos de professores: “A teoria que você aprende na universidade não se aplica aqui na prática.” E comentavam sobre essas concepções durante nossos encontros. Ana Luíza explicitou essa “falsa ideia”: “Eu tinha a falsa ideia de que na escola pública seria impossível oferecer matemática de uma forma mais ‘interessante’, por saber pouco e por não conseguir ver a ludicidade e me enganei. As experiências compartilhadas das aulas em escola pública geraram outras ideias de matemática em minha mente.”

Nossa experiência reforça a concepção sobre a importância de que os futuros professores conheçam práticas diferenciadas e reflitam sobre elas, como destacado por Larissa:

[...] percebemos que a teoria e a prática às vezes se distanciam da realidade que encontramos nas escolas, entretanto, nas experiências da Kátia ao ensinar a matemática para os alunos, vimos que é possível envolver a matemática com o cotidiano, aulas diferenciadas como a experiência das sombras dos sólidos, o professor exercendo a mediação de aprendizado.

Provavelmente, Larissa se referia aos contextos vivenciados nas escolas, sinalizando que as questões teóricas que discutíamos nas aulas não produziam sentidos, quando confrontadas com práticas que conheciam quando estudantes ou estagiários. No entanto, os compartilhamentos das aulas da professora Kátia possibilitavam esse outro olhar para o ensino de Matemática, como destacado por Talita: “Eu, por exemplo, lia os textos e fazia os fichamentos, mas o conteúdo era vago. Não fazia muito sentido para mim. Parecia ser um trabalho perdido. Só fazia sentido com a problematização em sala de aula.”

As reflexões também versavam sobre as possíveis dificuldades que um professor enfrenta em sala de aula, visto que a professora Kátia sempre as destacava. E os graduandos se apropriavam dessa ideia e as abordavam em suas narrativas, como no caso de Eliana: “[...] ter uma professora de sala de aula pública me permitiu ter uma visão mais ampla da realidade das escolas públicas, por meio das aulas da Kátia, consegui aprender mais sobre como dar aula e quais dificuldades nós professores podemos passar nas salas de aula.”

Ao terem contato com uma prática diferenciada na escola pública, muitos eram os questionamentos dos graduandos com relação às questões que fazem parte do cotidiano dos professores: alunos com deficiência, cumprimento de currículo imposto pela secretaria de educação, relação com a gestão da escola e com as famílias dos alunos. Em momento algum, a professora Kátia deixou de compartilhar como ela lidava com essas questões. Assim, não se trata de convencer os alunos de que tudo sai como planejado numa sala de aula, mas sim mostrar que o planejamento e a intencionalidade do professor fazem toda a diferença na aprendizagem dos alunos. Sempre reforçamos a importância de que as práticas sejam pautadas em referenciais teóricos. Como havíamos trabalhado na turma com o texto de Sforni (2015), frequentemente nos reportávamos a ele para justificar nossas ações, tanto na escola pública quanto na universidade. Destacávamos o papel da educação escolarizada como condição para apropriação dos bens culturais, produzidos historicamente: “Propiciar o acesso a esse bem cultural específico, que não está garantido aos sujeitos por outras práticas culturais, que não se adquire por meio da vivência e da empiria, é o papel que cabe às instituições de ensino.” (SFORNI, 2015, p. 376). Articulando forma e conteúdo, procurávamos mostrar aos graduandos que teoria e prática precisam estar vinculadas.

Para finalizar...

Neste texto, buscamos compartilhar nossa prática como formadoras, como um contraponto ao modelo de formação proposto pela BNC-Formação atrelado à BNCC. Essa prática foi estabelecida em parceria com a formadora da universidade, no curso de Pedagogia, que contou, em suas aulas, com uma professora da escola pública, realizando seu estágio docente. Essa parceria possibilitou que ambas atuassem como formadoras, produzindo significações para o processo de ensinar Matemática nos anos iniciais. Assim como Smolka (2000, p. 31), buscamos “enfocar as significações da ação humana, os sentidos das práticas, considerando que todas as ações adquirem múltiplos significados, múltiplos sentidos, e tornam-se práticas significativas, dependendo das posições e dos modos de participação dos sujeitos nas relações.”

Os graduandos puderam conhecer uma prática problematizadora de ensinar Matemática, pautada no diálogo e no respeito aos (não)saberes dos estudantes. Portanto, não se trata de colocar o futuro professor em contato com qualquer prática, mas aquela que possibilita aprendizagens aos alunos da escola pública, evidenciando o potencial desses alunos e o quanto eles se mobilizam para pensar matematicamente quando estão imersos num ambiente de aprendizagem. Os graduandos produziram outros olhares para o ensino de Matemática, para o quanto é possível desenvolver o gosto por essa disciplina, tida para muitos como de difícil acesso, e para a necessidade de ter um conhecimento especializado para atuar como docentes.

Esses graduandos também refletiram sobre as possíveis dificuldades que enfrentarão no exercício da docência, visto que são muitos os desafios que um professor enfrenta em seu dia a dia. Muitos desses obstáculos foram enfrentados por nós, também, como formadoras no curso de Pedagogia. Era uma turma numerosa, o que exigia de nós disponibilidade para leitura e devolutiva de todos os fichamentos e textos produzidos; enfrentamos também algumas resistências, principalmente de alunos que já atuavam como estagiários (em nosso contexto, muitos graduandos, assim que ingressam no curso, assumem estágios remunerados para acompanhar alunos com deficiência em salas de aula regulares) e contestavam as ideias que defendíamos, pois elas contrastavam com as práticas que vivenciavam nesses estágios. Acrescentemos a isso o público composto estudantes trabalhadores, que iam para a universidade à noite após um dia de exaustivo trabalho, o que exigia aulas mais dinâmicas, que os mobilizassem para o desenvolvimento de nosso planejamento.

Para nós, como formadoras, ficou evidente a importância de registros das práticas — no caso, a professora Kátia levava vídeos de suas aulas, narrativas pedagógicas e registros dos alunos —, pois eles se constituem importantes ferramentas para a formação de professores. Aprendemos muito nesse contexto. Para a estagiária, também pedagoga, foi possível refletir sobre sua formação acadêmica ao se espelhar nos graduandos com idades próximas a que ela tinha quando cursou a Pedagogia e, ao mesmo tempo, vivenciar uma prática docente no Ensino Superior — objetivo do estágio docente de doutorado. Para a formadora, titular da disciplina e licenciada em Matemática, foi a oportunidade ímpar de ter contato com a sala de aula dos anos iniciais, de conhecer o pensamento matemático de alunos dessa faixa etária quando inseridos em práticas problematizadoras.

Nossa expectativa é que formadores e futuros professores resistam ao modelo engessado de prática, tal como propõe a BNC-Formação. Os alunos necessitam de práticas emancipadoras que contribuam para uma formação crítica e democrática.

REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Os grifos nas narrativas são nossos com o objetivo de destacar as enunciações dos graduandos.
{2} Para as citações do material coletado no campo, utilizamos este recuo, de modo que estas citações se distingam das teóricas.

Autor notes

* Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade São Francisco (USF), Itatiba, São Paulo, Brasil. Endereço para correspondência: Rua Antonio Benedicto Casarin, n. 535, Condomínio Itaembu, Itatiba, SP, CEP: 13252-743.
** Doutorado em Educação pela Universidade São Francisco (USF). Professora de Educação Infantil na Secretaria Municipal de Educação (SME) de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil. Endereço para correspondência: Av. Rotary, 25, apto 91, Vila Brandina, Campinas, São Paulo, Brasil, CEP: 13092-509.

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