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Contribuições à compreensão dos saberes dos estudantes para a formação de professores da EJA: palavra falada, diálogo e escuta freireanos
Contributions to the understanding of students' knowledge and to the training of EJA teachers: spoken word, dialogue and listening from Freireans
Aportes a la comprensión de los saberes de los estudiantes para la formación de docentes de EJA: la palabra hablada, el diálogo y la escucha de los freireanos
Revista de Educação Matemática, vol. 19, e022006, 2022
Sociedade Brasileira de Educação Matemática

Artigos

Revista de Educação Matemática
Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil
ISSN: 2526-9062
ISSN-e: 1676-8868
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 19, e022006, 2022

Recepção: 08 Janeiro 2022

Aprovação: 14 Fevereiro 2022

Publicado: 08 Março 2022


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: Na presente produção analisamos a importância da escuta e da valorização dos saberes e conhecimentos dos jovens, adultos e idosos e como isso pode contribuir para a formação dos professores que atuam na EJA. Destacamos que a construção de práticas curriculares para a EJA deve levar em consideração as narrativas desses estudantes, e devem estar mais próximas de suas realidades. Por meio da apresentação de fragmentos das narrativas de João e de Dona Anita, ressaltamos a importância da promoção de espaços propícios ao aparecimento da palavra falada, do diálogo e da escuta atenta freireanos. João apresenta uma matemática ligada aos saberes do seu trabalho, e outra, ligada à sua vida de estudante. Dona Anita nos conta sobre sua vida atravessada pelas questões de gênero, destacando ter conhecido as letras no trânsito entre sua casa e o trabalho. Os resultados reiteram a ideia freireana de que esses sujeitos chegam à escola com saberes construídos em suas experiências, não sendo, portanto, caixas vazias ou sujeitos analfabetos. Concluímos reforçando a atualidade do pensamento de Paulo Freire, sobretudo quanto ao diálogo para a construção de uma educação crítica, democrática e libertadora.

Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos, Saberes dos estudantes da EJA, Paulo Freire.

Abstract: This article analyzes the importance of listening and valuing the knowledge and knowledge of young people, adults and the elderly. The intention is to contribute to the training of teachers who work in EJA. The construction of curricular practices for EJA must take into account the narratives of these students. This construction must be close to the reality of these students. Through the presentation of parts of the narratives by João and Dona Anita, the importance of promoting spaces conducive to the emergence of the spoken word, dialogue and attentive listening by Freireans is highlighted. João presents a mathematics linked to the knowledge of his work, and another linked to his student life. Dona Anita talks about her life crossed by gender issues. She highlights having known the lyrics in the traffic between her home and work. The results reiterate the Freirean idea that these subjects arrive at school with knowledge built on their experiences. These individuals are not empty boxes or illiterate subjects. The conclusion reinforces the relevance of Paulo Freire's thought, especially regarding the dialogue for the construction of a critical, democratic and liberating education.

Keywords: Youth and Adult Education, Knowledge of EJA students, Paulo Freire.

Resumen: Este artículo analiza la importancia de escuchar y valorar los saberes y saberes de jóvenes, adultos y mayores. La intención es contribuir a la formación de los docentes que laboran en EJA. La construcción de prácticas curriculares para EJA debe tener en cuenta las narrativas de estos estudiantes. Esta construcción debe estar cerca de la realidad de estos estudiantes. A través de la presentación de partes de las narrativas de João y doña Anita, se destaca la importancia de promover espacios propicios para el surgimiento de la palabra hablada, el diálogo y la escucha atenta de los freireanos. João presenta una matemática ligada al conocimiento de su obra, y otra ligada a su vida estudiantil. Doña Anita habla de su vida atravesada por cuestiones de género. Destaca haberse conocido la letra en el tránsito entre su casa y el trabajo. Los resultados reiteran la idea freireana de que estos sujetos llegan a la escuela con conocimientos construidos a partir de sus experiencias. Estos individuos no son cajas vacías ni sujetos analfabetos. La conclusión refuerza la relevancia del pensamiento de Paulo Freire, especialmente en lo que se refiere al diálogo para la construcción de una educación crítica, democrática y liberadora.

Palabras clave: Educación de Jóvenes y Adultos, Conocimiento de los estudiantes de EJA, Paulo Freire.

INTRODUÇÃO

A educação de jovens, adultos e idosos, no contexto brasileiro, tem sido marcada por discussões variadas, dentre as quais, as que versam sobre a formação de professores que pretendem lecionar para esse público tão específico. Analisamos que tais discussões têm se acentuado especialmente quando da institucionalização dessa educação no espaço escolar, oficializada pela última Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)[1], promulgada em 1996, que a reconheceu como modalidade, denominando-a Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Tal reconhecimento encaminhou uma orientação de que a EJA tornava-se integrante do sistema educacional brasileiro, contudo, careceu de uma perspectiva que mostrasse seu sentido e a sua relevância à sociedade. As dúvidas sobre o que ela representava, quais suas finalidades e objetivos, refletiram em concepções equivocadas que a reduziam, por exemplo, ao ensino supletivo e, ainda, que em suas práticas, os professores poderiam reproduzir os currículos de outras etapas de ensino. Isso implicou na promulgação de alguns documentos oficiais, dentre os quais, o Parecer nº 11/2000 (BRASIL, 2000)[2], o qual ratificou o sentido de modalidade da EJA, explicitou como suas funções, a de reparação do acesso à escola, a equalização de seu ensino e a qualificação dos estudantes. Em se tratando dos professores, em tal documento se esclarece que:

[...] o preparo de um docente voltado para a EJA deve incluir, além das exigências formativas para todo e qualquer professor, aquelas relativas à complexidade diferencial desta modalidade de ensino. Assim esse profissional do magistério deve estar preparado para interagir empaticamente com esta parcela de estudantes e de estabelecer o exercício do diálogo. (BRASIL, 2000, p. 56).

A interação empática, dada, sobretudo, por meio do diálogo entre professores e estudantes, por sua vez, há muito tem sido mostrada como eixo orientador para que um ensino voltado aos jovens, adultos e idosos, possa efetivamente contribuir para suas formações críticas e os desenvolvimentos de suas aprendizagens. Freire (1968) já indicava ser necessário escutar as vozes desses sujeitos, no sentido de captar, sob uma escuta atenta e sensível, suas especificidades, de modo que essa escuta pudesse direcionar os professores construírem um ensino cuja base centrasse nas realidades dos estudantes.

O respeito, a valorização e o reconhecimento das especificidades dos sujeitos que constituem a EJA são entendidos como essenciais à formação de professores da modalidade. Arroyo (2006) já indicava que as formações de professores da EJA deveriam privilegiar as histórias de vida dos estudantes de modo a entendê-los como sujeitos concretos, de direitos e em constante aprendizagem. Para o referido autor, se os jovens, adultos e idosos são entendidos exclusivamente sob um manto da escolarização, os mesmos são resumidos a “alunos em trajetórias escolares truncadas” (ARROYO, 2006, p. 23), no entanto, cada um deles são mundos que precisam ser ouvidos e dialogados nos espaços escolares.

Ancoramo-nos nas perspectivas dos autores citados para empregarmos a defesa do quão necessário se faz abrir espaços de diálogo e ouvir os jovens, adultos e idosos, estudantes da EJA, para se construir práticas curriculares condizentes às suas realidades e sob um viés de contribuição às suas consciências críticas.

Nestas perspectivas, neste artigo, costuramos diálogos entre resultados de pesquisas[3], destacando algumas falas de estudantes da EJA, em que narram passagem que analisamos aspectos de suas histórias de vidas e entendemos poder contribuir à formação de professores da modalidade. Assim, objetivamos discutir sobre como a escuta atenta dos saberes dos estudantes da EJA, entendida à luz da palavra falada e do diálogo freireanos, podem contribuir para que os professores construam práticas curriculares mais próximas às realidades dos educandos.

Optamos por iniciar o artigo destacando como as ideias freireanas atravessam a educação brasileira e a sua história. Em seguida, encaminhamos nossas perspectivas sobre como a escuta atenta dos saberes dos estudantes da EJA pode contribuir às práticas curriculares docentes. Posteriormente, trazemos a escuta dos saberes matemáticos de João e a escuta dos saberes da leitura da palavra escrita e a leitura de mundo das experiências de Dona Anita[4].

A EJA E AS IDEIAS FREIREANAS

Alguns importantes movimentos populares preocupados com a identidade nacional, tais como a Mobilização de Erradicação do Analfabetismo[5] apareceram no Brasil na metade do século XX. Em paralelo, houve também a mobilização de diversos segmentos da sociedade para a discussão de mudanças de paradigmas educacionais, com os quais, visavam enfrentar problemas vivenciados nessa área e implementar novos princípios orientadores para a revisão das ideias pedagógicas relacionadas ao trabalho educacional com jovens e adultos, defendidos por Paulo Freire. Dentre estes entendimentos, a percepção de que o analfabetismo é uma consequência da exclusão social, econômica e cultural. Além disso, a compreensão de que é necessário entender o estudante adulto em suas especificidades, proporcionando atividades pedagógicas em um currículo escolar com especial atenção à valorização dos saberes oriundos de suas experiências de vida.

Em 1963, Paulo Freire assume a coordenação nacional do Plano Nacional de Alfabetização, buscando implementar um revolucionário modelo educacional: a pedagogia do oprimido. Entretanto, no ano seguinte um golpe militar o obriga a abdicar desse cargo e interromper a proposta de uma educação popular, crítica, democrática e libertadora.

Uma nova Constituição Federal, em 1967, mantém a educação como um direito de todos e propõe a obrigatoriedade da escola ao brasileiro dos 7 aos 14 anos de idade. Surge então a discussão relacionada à escolaridade apropriada aos adolescentes, e ao conceito de “jovem”, o que, segundo Cury (BRASIL, 2000), passaria a ser uma referência para o ensino supletivo. Nesse mesmo ano, é implementado o Movimento Brasileiro de Alfabetização, que manteria algumas características do método de alfabetização desenvolvido por Freire, mas sem a problematização conscientizadora da realidade do estudante.

Após os anos de ditadura militar, com a volta gradual da abertura política em meados de 1980, acompanhamos uma renovação de forças nos movimentos sociais e a implementação de uma nova Constituição que defende uma “sociedade livre, justa e solidária” (BRASIL, 1988, p. 2). Foi um momento propício para uma revisão pedagógica que reestruturou os princípios norteadores da educação nacional, especialmente com a promulgação da LDB de 1996, que transforma em direito do cidadão e dever do Estado antigos anseios de diversos movimentos populares, dentre eles, a erradicação do analfabetismo e a universalização do atendimento escolar.

Segundo Freitas (2013), em nossos dias atuais ainda podemos constatar que as diversas mudanças ocorridas na área da educação foram significativas, mas ainda não suficientes para erradicar o analfabetismo. Além disso, acabaram gerando outros tantos problemas relacionados à educação de jovens, adultos e idosos, tais como o gradual desmonte proveniente de práticas de diminuição da quantidade de escolas que oferecem a EJA, a implementação crescente da Educação à Distância, e a imposição de currículos homogeneizantes, moldados pela Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017), que tem sido utilizada para processos de “atualização” destes currículos.

Essas constatações no permitem analisar distanciamentos das propostas de Paulo Freire e de outros pensadores de seu tempo. Temos acompanhado o que pode ser considerado como uma degradação do sentido freireano de que a educação é um processo permanente de construção de conhecimentos que visa à conscientização crítica dos homens sobre as suas realidades e que precisa levar em consideração seus saberes de mundo.

PALAVRA FALADA, DIÁLOGO E ESCUTA FREIREANOS NA EJA

Conforme explicitamos, as ações de escutar os estudantes da EJA e construir uma relação empática com os mesmos têm sido indicadas como base das práticas curriculares na modalidade. Nas pesquisas acompanhadas no âmbito do GPEJA, que contemplam professores como participantes, nos deparamos com a efetivação dessas ações por parte dos mesmos. Dentre os aspectos percebidos em algumas delas, os professores reconhecem que os estudantes apresentam saberes construídos em suas experiências e suas potencialidades. Entretanto, embora a aulas observadas fossem conduzidas por momentos de diálogos, tais saberes resumiram-se a ser ponto de partida para iniciá-las, diluindo-se nas explicações dos conteúdos abordados (XAVIER, 2019).

Reconhecemos a importância dos conteúdos curriculares às aprendizagens dos estudantes da EJA. Para tanto, empregamos a defesa de que os saberes desses sujeitos podem ser inseridos como integrantes das práticas curriculares dos professores. Analisamos que para haver esta integração os professores precisariam ampliar suas perspectivas de educação, podendo entendê-la, por exemplo, como processo de “que fazer permanente” (FREIRE, 2005, p. 84) que transcende os muros da escola. Esse sentido de educação se assenta na concepção freireana de que os jovens, adultos e idosos que frequentam os bancos escolares, como demais seres humanos, são sujeitos inconclusos que, desde sempre, encontram-se em processo constante de aprendizagem (FREIRE, 2005).

Para Freire (2005), a educação enquanto que fazer permanente, pressupõe ser também crítica e problematizadora, trata-se de uma ação de prática para as liberdades dos sujeitos que constituem os espaços educativos, cuja essência se baseia no diálogo horizontal entre eles. Entretanto, o referido autor destaca que as palavras faladas precisam ser autênticas de verdades que sinalizem as realidades concretas desses sujeitos, precisando mesmo, serem entendidas como práxis de ação-reflexão, os seus elementos constitutivos, que estruturam um diálogo autêntico humano.

Compreendemos, assim, que no âmbito das turmas de EJA, o exercício de reflexão sobre a práxis das palavras faladas nos diálogos entre os sujeitos seria uma possibilidade de os professores melhor compreenderem as realidades, as diferenças e os atravessamentos das histórias de vida dos estudantes. A escuta atenta dos saberes dos jovens, adultos e idosos, pode encaminhar a construção de práticas curriculares mais próximas de suas realidades, assim como permitir que eles reflitam criticamente sobre suas situações reais.

Nas próximas seções apresentamos excertos de narrativas em que percebemos como os saberes dos jovens, adultos e idosos são construídos. São saberes oriundos de realidades que, sob nossas percepções, poderiam ser integrados às práticas curriculares e discutidos nas formações de professores que pretendem lecionar na EJA.

OS SABERES MATEMÁTICOS DE JOÃO[6]

Em nosso encontro com João, após sua apresentação, nos apresentarmos também e pedimos que discorresse sobre como a Matemática estava presente em sua vida e na escola. Ao longo de sua narrativa ele informou trabalhar como pintor automotivo, função que entendemos contribuir para a construção de seus saberes. Para isso, destacou o exemplo da pintura de um paralama, em que “[...] a gente pinta por cento e vinte reais, uma porta a gente pinta por cento e trinta. A gente já pede os duzentos e cinquenta, a gente já diz pro cliente a soma, aí já é uma Matemática”. Percebemos que João compreende uma presença matemática na função em que exerce, de modo que ele realiza a operação soma, em que ele entende “ai já é uma Matemática”.

No decorrer de sua narrativa ele continua destacando as operações matemáticas, desta vez, a divisão: “Por exemplo, a lixa, a gente pega uma, faz ela virar quatro lixa. Corta ela em quatro pedaços igual. A gente usa esses quatro pedaços, que é um pra cada peça do carro. Tem que trabalhar no carro com esses quatro pedaços, que é pra economizar”. A operação divisão é compreendida pelo João trabalhador, que a realiza facilmente com a lixa. A razão que o leva a dividir esse material é não só a distribuição matematicamente em partes iguais, mas o fato de ter que “economizar”.

Em nossas leituras João reflete sobre sua ação de dividir a lixa e, ao mesmo tempo, a consciência sobre as possibilidades dessa ação, talvez a de evitar sofrer algum tipo de advertência de seu patrão. Essa análise nos encaminha a percepção de que os saberes matemáticos de João são construídos também enquanto ação de sua sobrevivência, nesse caso, para permanecer no seu emprego, além de uma relação direta com sua situação social de homem, negro, jovem e trabalhador.

Compreender as possibilidades que pode sofrer com sua ação (ou não ação) de dividir a lixa e fazer a soma, sinaliza que João desenvolve uma complexidade de pensamentos críticos que é exclusiva dos sujeitos humanos, não de todos, mas daqueles dotados de uma consciência crítica de sua realidade (FREIRE, 2005). Assim, João pronuncia a autoconsciência de suas ações, de sua realidade crítica e se compreende como integrante de sua realidade.

Em continuidade de sua narrativa, João discorre sobre como a Matemática está presente na escola, destacando: “Na escola é normal, a professora passa os dever, explica. Na hora eu respondo direitinho, mas depois eu esqueço tudo. Eu respondo assim, as pergunta né. Tipo, a professora faz os dever, as conta, eu respondo. Às vezes é fácil, às vezes é difícil”.

João já frequentou a escola antes, então já conhece a matemática dos “dever” da professora. Mesmo a conhecendo, sua fala nos indica trazer lembranças da Matemática como algo que nos parece ter sido também ruim para ele: “Às vezes é fácil, às vezes é difícil”. Continuando sua narrativa, ao falar sobre as atividades de Matemática, ele nos informa que as realizava, “[...] só que às vezes tava certo, outras, tava errado, aí a professora me ajudava. Se eu fosse estudar pra uma prova de Matemática, eu estudava, mas na hora da prova dava um brancão em mim. Não sou bom de decorar a Matemática”. João parece sentir-se culpado por não ter aprendido os saberes escolares. Esse sentimento, ou ressentimento, é destacado por Fonseca (2001) quando, analisando discursos matemáticos de estudantes da EJA, indica que eles “parecem devotar às limitações do próprio aprendiz os percalços no fazer e compreender matemáticos; e a seus esforços individuais a possibilidade de superá-los” (FONSECA, 2001, p. 206).

Ao ouvir essas narrativas de João analisamos que elas poderiam ser desenvolvidas em sala de aula, como e integrante nas aulas de Matemática na EJA. Contudo, antes elas precisariam ser ouvidas atentamente pela sua professora, e essa docente precisaria estar ciente do quanto os sentidos de aprendizagem dos conteúdos e de currículo prescritivo não dão conta das realidades dos estudantes e da própria modalidade. Encontramos em João um sujeito com consciência de que possui saberes matemáticos. Acreditamos que a sala de aula de EJA seria o espaço ideal de aproximação desses saberes aos escolares, onde, reiteramos, sua professora, respaldada por ações dialógicas, poderia não só reconhecê-los e valorizá-los, mas também incorporá-los à sua prática curricular.

Nesse sentido, frisamos a relevância dos professores, em especial, os que lecionam na EJA, em estarem atentos, nas salas de aulas, para escutar de onde vêm e como são construídos os saberes dos jovens, adultos e idosos, e de que forma os saberes escolares podem ser deles aproximados. A existência desses sujeitos requer essa sensibilidade de enxergá-los como sujeitos humanos que têm histórias de vida e suas realidades concretas. Como sinaliza Freire (2005), essa existência mesma, porque humana, não é muda, nem pode ser silenciada, oprimida. Entendemos que ela precisa ser potencializada.

“JÁ CONHEÇO JÁ AS LETRAS DO ÔNIBUS, JÁ SEI PRA ONDE VAI. SE VAI PRA LI, VAI PRA CÁ”: OS SABERES DE DONA ANITA EM SUAS NARRATIVAS

Apresentamos em seguida, alguns resultados de uma atividade autobiográfica intitulada “Estrela da Vida” (DIAS, 2020), desenvolvida por um professor participante do Grupo de pesquisa XXX, no ano 2019, em uma turma de primeiro segmento do Ensino Fundamental da EJA em uma escola pública municipal no estado do Rio de Janeiro. Esta atividade teve como objetivo principal oportunizar o diálogo e a escuta dos estudantes da EJA e buscar identificar e compreender os saberes presentes em suas histórias de vida e como foram construídos ao longo de suas vivências.

A atividade se iniciou com os estudantes compondo um desenho de uma estrela, de forma livre e em cada ponta desta estrela ele deveria indicar momentos que considerava relevantes em suas vidas. Em seguida, deveriam apresentar suas estrelas para a turma, fazendo um breve relato dos momentos destacados nelas.

Destacamos aqui a participação de Dona Anita, estudante da EJA em processo de alfabetização que, na época tinha 74 anos[7]. Branca de olhos claros, mãe e avó, Dona Anita morava em residência própria e destacou que um dos motivos de estar matriculada naquele curso era o fato da escola ser próxima à sua casa.

Em sua estrela ela destacou os seguintes temas em cada uma das pontas: “não estudou”, “casou”, “criou os filhos”, “voltou a estudar” e “trabalhar”. Por sinal, em seu relato, frisou que o “trabalho” foi um dos motivos que a impediram de frequentar a escola em sua juventude: “Eu não pude estudar por causa disso, né? Eu trabalhava lá nos Cavaleiros. [...] Eu chegava as sete e pouca da noite e não dava tempo de estudar. Saia às cinco e meia da manhã todo dia e chegava às sete horas da noite”.

Quando criança, Dona Anita não pôde frequentar a escola, pois, seu pai não permitia. Ela e sua irmã deveriam ficar em casa a ajudar a mãe nos trabalhos domésticos e na roça. Percebemos que esse percurso de vida é um marcador de gênero, percorrido principalmente pelas mulheres que, de forma geral, buscam a EJA com motivações diferentes dos homens (FONSECA, 2012), geralmente após criarem os filhos e os netos. Em seu relato, Dona Anita destaca: “Quando eu era nova não dava para estudar mesmo. Porque a escola era tão longe, né? Os meninos ainda iam de cavalo, de bicicleta, né? Mas eu,... Meu pai não deixava a gente ir não. Eu e minha outra irmã não ia. De jeito nenhum. Ele não deixava”.

Ao relatar que quando criança não estudou “Porque a escola era tão longe, né?”, observamos que a distância da escola era um impeditivo, especialmente por ser mulher, pois os homens “[...] iam de cavalo, de bicicleta, né?”. Eles ainda iam, apesar da escola ser longe. Este relato nos mostra como as mulheres têm sido subjugadas na sociedade brasileira, abrindo mão da formação escolar e se dedicar as atividades domésticas. Para Gondra e Schueler (2008, p. 202) “as meninas das camadas populares, desde muito cedo, a aprendizagem prática das atividades cotidianas nas tarefas domésticas, na agricultura ou nos ofícios urbanos era prioritária”, a aquisição dos saberes letrados e, consequentemente, a possibilidade de ocupação de postos de trabalhos deixam de ser prioridade.

Observamos que essas ideias são presentes na vida dos estudantes da EJA, que estes se culpabilizam pela falta de oportunidade de frequentar a escola, como podemos perceber no trecho da fala: “A gente depois de velha que tem oportunidade tem que aproveitar ela, né? Aproveitar ela. Porque quando é mais nova não tem oportunidade que teve agora. Quando é mais nova é só casar, criar filho, tomar conta de casa, só isso mesmo, né?”.

Dona Anita parece compreender que as situações as quais foi condicionada eram naturais e talvez até incontestáveis, pois, desde criança lhe foi passado que a mulher não precisaria estudar. Assim, sua prioridade seria de criar os filhos e cuidar dos afazeres domésticos. A essa situação, posteriormente foi agregada a necessidade de trabalhar “fora” para ajudar no sustento da família: “Saia às cinco e meia da manhã todo dia e chegava às sete horas da noite. Eu vinha, pegava o ônibus até a rodoviária. Aí pegava outro ônibus que vinha, chegava aqui não dava tempo de eu estudar. Aí eu fiquei esse tempo todo só trabalhando, sem estudar, né? Trabalhando aqui, trabalhando ali. E fui levando a vida, né?”

Arroyo (2017, p. 21), se refere aos jovens, adultos e idosos estudantes da EJA como “passageiros da noite”, que aparentemente têm escolhas, porém “não tão livres”, como a de estudar e trabalhar, ou quando precisa escolher entre um e outro, opta por apenas trabalhar. A necessidade de se sentirem inclusas no mundo, segundo Freire (2005) faz com que estas pessoas se identifiquem em suas realidades, questionem e se reconheçam neste mundo, desenvolvendo assim suas autoconsciências críticas que lhes permita confrontar e melhorar sua condição.

Consideramos que a história de Dona Anita se confunde com a de outras mulheres que, diante deste ambiente hostil que lhes afastou da educação formal, construíram estratégias para lidar e sobreviver ao mundo letrado de forma peculiar. E estas estratégias fazem parte dos saberes que estas pessoas acumularam e desenvolveram ao longo de suas vidas, como podemos observar na seguinte fala: “Já conheço já as letras do ônibus, já sei para onde vai. Se vai pra ali, vai pra cá. Eu já sei. Já sei mais ou menos. Contar dinheiro também já sei. Já sabia já. Contar dinheiro eu já sabia já. Muito fácil, né?”. Neste trecho, Dona Anita nos conta que desenvolveu uma forma de identificar o letreiro dos ônibus e, mesmo sem saber ler, consegue se deslocar com segurança, ir no caminho certo. Mesmo sem conseguir explicar como, ela sabe realizar pagamentos e conferir o troco, entre outras habilidades que envolvem o uso do dinheiro.

Analisamos, por fim, que o fato de Dona Anita não dispor dos amplos conhecimentos da norma culta da leitura e escrita da Língua Portuguesa, assim como da simbologia matemática, dificultou, mas não limitou a sua vivência em um mundo letrado. Acreditamos que, se o professor buscar compreender os conhecimentos construídos por ela, abrindo espaços para que tais conhecimentos sejam apresentados, valorizados e incorporados às práticas pedagógicas da sala de aula da EJA, podemos ter maiores aproximações das propostas curriculares normalmente trabalhadas das vivências e experiências destes aprendentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos neste artigo discutir a respeito da escuta atenta dos saberes dos jovens, adultos e idosos, e de como tal escuta pode contribuir para que a formação dos professores promova possibilidades de análises sobra a implementação de práticas curriculares mais próximas das realidades dos estudantes da EJA. Defendemos que essa formação, em uma perspectiva freireana, envolva a percepção da importância da promoção de espaços de conscientização crítica desses estudantes, de modo que eles possam se rebelar contra as situações de opressões em que se encontram. Assim, destacamos a compreensão de que os princípios do pensamento de Paulo Freire se mantêm atuais, em especial, em relação à EJA.

A contribuição às práticas curriculares é aqui apresentada por meio de narrativas dos estudantes João e Dona Anita, os quais discorrem às suas maneiras, sobre suas vidas, as relações com o mundo e as relações estabelecidas em suas vivências. Essas narrativas retratam como os saberes matemáticos e de leitura são construídos nas experiências do trabalho e dos estar no mundo desses dois estudantes.

Na narrativa de João, por exemplo, foi possível identificar a existência de pelos menos duas matemáticas: a construída em sua vida profissional, utilizada por ele para estabelecer valores aos serviços de pintura automotiva para os quais é contratado; e a matemática da escola, a qual ele se refere como sendo da “matéria” que a sua professora passava. Já na narrativa de Dona Anita, encontramos algumas razões de não ter frequentado a escola quando criança e ter buscado estudar posteriormente, em uma história de vida marcada, sobretudo, pela sua condição de ser mulher. Entretanto, a condição de não leitora das palavras escritas não a impediu de identificar os ônibus que deveria pegar para chegar ao seu trabalho, ou mesmo de contar dinheiro. O ir e vir, no trânsito entre sua casa e o trabalho a fez compreender o mundo e conhecer as letras, antes mesmo de conhecer a escola.

Essas escutas das narrativas apresentadas reforçam a perspectiva freireana de que estes indivíduos são sujeitos politicamente alfabetizados e possuidores de saberes, que é o seu próprio estar no mundo. Finalizamos destacando que estas e tantas outras narrativas provenientes de estudantes da EJA, nos dão forças para continuarmos a luta em defesa da EJA e dos direitos dos jovens, adultos, e idosos. Luta esta tão cara a Paulo Freire, defendida por ele em toda sua trajetória, com o objetivo de proporcionar uma educação realmente pública, democrática e de qualidade para todos os brasileiros, em especial, aos oprimidos da classe trabalhadora.

REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
[2] Parecer nº 11, de 10 de maio de 2000, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos.
[3] Pesquisas desenvolvidas no interior do Grupo de Pesquisa em Educação de Jovens e Adultos (GPEJA), do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.
[4] João e Dona Anita são nomes fictícios.
[5] O Movimento se iniciou no ano de 1958 e foi encerrado em 1963.
[6] João é um jovem estudante das séries finais do Ensino Fundamental na EJA, homem negro, de 30 anos, pai de família, morador da zona rural nordestina, que transita diariamente para o centro de uma cidade onde trabalha.
[7] A atividade foi aplicada no ano de 2019.

Autor notes

* Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (PPGEUFF). Membro do Grupo de Pesquisa em Educação de Jovens e Adultos (GPEJA) e do Grupo de Etnomatemática da UFF (GETUFF). Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Endereço para correspondência: Rua José Ribeiro da Silva, 83, Quadra 06, Alto da Brasília, Sobral, Ceará, Brasil, CEP: 62044010.
** Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (PPGEUFF). Membro do Grupo de Pesquisa em Educação de Jovens e Adultos (GPEJA) e do Grupo de Etnomatemática da UFF (GETUFF). Professor de Arte da rede pública municipal de Macaé – RJ. Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Endereço para correspondência: Rua da Felicidade, 127, Barro Vermelho, São Gonçalo, Rio de Janeiro, CEP: 24412-310.
*** Doutor em Educação Matemática (PUC-SP). Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFF). Coordenador do Grupo de Pesquisa em Educação de Jovens e Adultos (GPEJA) e Vice-coordenador do Grupo de Etnomatemática da UFF (GETUFF) Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.. Endereço para correspondência: Rua Barão de Ipanema, 130, Copacabana, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, CEP: 22032-050.

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